olá

tenho algo pra te mostrar

mas queria te avisar antes que… o que eu tenho pra te mostrar é uma armadilha

tudo bem?

você não é obrigado a ver não, tá?

ninguém é obrigado a ver.

mas, se você quiser ver, entra aqui:

<< https://clarissareche.com/caleido/ >>

ou

continua seguindo nas próximas páginas

mas só se você quiser, viu?

ninguém é obrigado a ver.

você vai ver uma imagem caleidoscópica na próxima página

fiz ela usando uma única fotografia espelhada

queria te convidar para, enquanto você olha para a imagem, tentar adivinhar o que tem nessa fotografia

só pra te lembrar: o que você vai ver é uma armadilha.

imaginou o que tem na fotografia?

queria saber o que você pensou, vou ficar curiosa 

olha

eu posso te mostrar essa foto

e te contar o segredo, a armadilha

só se você quiser, claro

ninguém é obrigado a ver

mas se você quiser

está na próxima página

Esse é meu sangue menstrual.

Olá. 

Te capturei na minha armadilha.

O caleidoscópio com o qual você brincou foi feito a partir da fotografia acima. Na fotografia você pode ver todo o papel higiênico que usei durante meu período menstrual, colado em um papelão. Eu disse que você não era obrigado a ver. Ninguém é. Eu sei disso, foi isso que minha mãe me ensinou, o que todas as mães das minhas amigas ensinaram a elas. De onde eu venho, nosso encanamento é muito ruim e jogamos nosso papel higiênico usado no lixo. Nessas nossas terras latinas, uma das primeiras coisas que nos ensinam quando chega a menarca é dobrar bem o papel para que ninguém veja acidentalmente o nosso sangue – ninguém é obrigado a ver.

Essa foto e a armadilha caleidoscópica em que te coloquei fazem parte de um dos experimentos que desenvolvi nesta tese. Estive remexendo nas dobras de lixo, colhendo sussurros: meu objeto de pesquisa foram as experiências de menstruação que as antropólogas tiveram durante o trabalho de campo em terras indígenas. Como você pode imaginar, muitas dessas experiências foram e são suprimidas das produções formais dessas pesquisadoras (dissertações, teses, artigos…), restringindo-se, na melhor das hipóteses, às conversas nos corredores. A vontade de pesquisar esse tema surgiu quando, há alguns anos, ouvi de uma antropóloga indígena que “a universidade não respeita o sangue das mulheres indígenas”. E então ela contou que, todos os meses, tinha que se ausentar do trabalho por uma semana para cumprir deveres rituais, e isso automaticamente a colocava em uma situação menos produtiva. Disse, ainda, que não queria que a universidade a compreendesse assim, como menos produtiva, queria que a academia repensasse completamente a ideia de produtividade.

Donna Haraway falou-nos do corpo ideal que faz a ciência, um corpo sem marcas. Esse corpo não sangra. Mas sangramos – de muitas maneiras – e aqui estamos. Muitas das antropólogas que entrevistei contaram-me como o silêncio sobre a menstruação durante a sua formação as ensinou a esconder o que não pode ser escondido. Isso porque muitos povos indígenas possuem (bio)tecnologias que tornam a menstruação um assunto público, como a capacidade de sentir o cheiro do sangue menstrual a uma distância considerável. Além disso, através da investigação, tomei contato com dimensões profundas e transformadoras a respeito da menstruação: desde a ligação mítica da origem da menstruação com a proibição do incesto (que perturba as teorias clássicas da antropologia feitas pelos homens), bem como a descoberta de uma série de técnicas que as mulheres indígenas cultivam para estar com o sangue, como a capacidade de não vazar, ou seja, controlar o sangue com os músculos vaginais. 

Resolvi fazer o experimento que gerou a fotografia que você tem em mãos durante a quarentena, quando muitos de nós vimos seus campos desmoronarem – para mim não foi diferente. Sozinha, em casa, tive uma ideia: tentar eu mesma segurar meu sangue menstrual, e assim ficar com o problema. E eu fiz. E como um corpo que sangra, sei que não poderia te mostrar essa imagem sem te colocar primeiro na armadilha. Não poderia ferir seus sentimentos estabelecidos. Essa é uma armadilha feminista, nos moldes das armadilhas propostas por filósofas da ciência como Isabelle Stengers. Gostaria de encerrar esta carta com suas palavras: “não ferir os sentimentos estabelecidos, para tentar abri-los àquilo que a sua identidade estabelecida levou-os a recusar, a combater, a compreender mal”(Stengers, 2002, p. 26).

Estou aqui se você quiser conversar.

Um abraço caloroso,

Clarissa