Para a antropóloga Luisa Elvira Belaunde, a experiência de menstruar durante seu trabalho de campo foi percebida como um momento de produção de vulnerabilidade, de “se tornar vulnerável”, o que, em termos práticos, significava “receber os cuidados dos outros e ser objeto de pensamento dos outros” (Dainase; Seraguza, 2016, p. 291). Além disso, como será exposto em detalhes mais adiante, muitos dos relatos também dão conta de sentimentos contraditórios que acompanham as experiências menstruais em campo, em que sentimentos de tensão, solidão, tristeza, preocupação e isolamento convivem – às vezes de forma sobreposta – com sentimentos de gratidão, alívio, carinho, felicidade, entre outros. Vulnerabilidade e sentimentos contraditórios são elementos que emergem do campo e que podem ser ressignificados a partir de apropriações críticas e de práticas de pesquisa.

Belaunde relata que, apesar de ter experienciado a menstruação como momento de “aceitar a vulnerabilidade”, foi impedida de escrever sobre isso na produção de sua tese de doutorado, ainda que tal experiência estivesse atrelada ao recorte que a antropóloga queria desdobrar, a saber, a noção de “bem-viver” (Dainase; Seraguza, 2016, p. 296) como desejo e processo. Belaunde atribui tal rejeição aos interesses correntes à época em teorias totalizantes sobre conflito social e subordinação das mulheres. Tal situação descrita por Belaunde, em conjunto com o pouco interesse histórico na menstruação como tema central de etnografias, bem como a ausência de relatos de experiências menstruais de pesquisadoras em suas produções acadêmicas de relevância, provoca o pensamento: por que experiências menstruais em campo são desinteressantes para a produção de conhecimento antropológico? 

Em conjunto com escolhas político-acadêmicas que incidem sobre os programas de pesquisa, como Belaunde apontou, a antropóloga cubana Ruth Behar (1996) nos ajuda a pensar tal apagamento e desinteresse a partir de uma questão estrutural da etnografia e do trabalho antropológico baseado em pesquisa de campo: a necessidade “científica” da contenção da vulnerabilidade de quem pesquisa. 

Para Behar, a antropologia é a forma de testemunho mais fascinante, bizarra e necessária que nos resta. Enraizada no encontro com uma “cultura outra”, a missão intelectual levada a cabo pela antropologia é profundamente paradoxal:

(…) get the “native point of view,” pero por favor without actually “going native.” Our methodology, defined by the oxymoron “participant observation”, is split at the root: act as a participant, but don’t forget to keep your eyes open. But when the grant money runs out, or the summer vacation is over, please stand up, dust yourself off, go to your desk, and write down what you saw and heard. Relate it to something you’ve  read by Marx, Weber, Gramsci, or Geertz and you’re on your way to doing anthropology. (Behar, 1996, p. 5)

Recordo-me de, durante minha formação em ciências sociais, escutar causos sobre o perigo de virar “o outro”: alguém que largou a academia para seguir com o circo que pesquisava; alguém que foi fazer campo em uma aldeia indígena e ficou por lá mesmo; alguém que se apaixonou tanto pela capoeira que não conseguiu terminar de escrever a tese. Como os causos que ouvi sobre menstruação durante o trabalho de campo, as histórias de deserção eram contadas entre risadas, mas também com um tom de aviso para nós, aspirantes à profissão. E o aviso era claro: estar com o outro é estar vulnerável. 

Behar argumenta que a vulnerabilidade acompanha o trabalho de campo em antropologia desde os primórdios da disciplina, uma vez que “estar lá” sempre incluiu uma série de riscos, inclusive o risco de morte. As próprias denominações de “antropólogo” e “trabalho de campo” servem como um método clássico para lidar com a ansiedade que deriva de situações de vulnerabilidade que emergem quando uma pessoa que pesquisa se vê “cúmplice com estruturas de poder, ou impotente para libertar outro do sofrimento, ou sem saber se deve agir ou observar” (Behar, 1996, p. 6). Porém, grande parte da supressão das vulnerabilidades acontece na escrita do texto etnográfico, afinal, em uma disciplina calcada na revelação do outro, não há maior tabu do que a autorrevelação (ibid., 1996, p. 26).

Porém, para algumas pessoas, em alguns contextos de pesquisa, a autorrevelação não é uma escolha e, sim, uma necessidade metodológica. Behar advoga em favor do que chama de “escrita vulnerável”, capaz de abrigar um tipo de autoridade etnográfica que não nos faça desconfiar da nossa própria autoridade, sentimento destroçador em uma academia acostumada com a onisciência. Para a antropóloga, uma escrita vulnerável é uma escrita aberta à presença das emoções de quem pesquisa. Nas palavras de Behar, tal proposta surgiu a partir de “um senso de urgência, um desejo de inserir um diário da minha vida nos relatos das vidas dos outros que eu estava sendo obrigada a produzir como antropóloga” (ibid., 1996, p. 19). Após anos de prática incerta sobre tal movimento, Behar nos adverte: “escrever de forma vulnerável exige tanta habilidade, nuances e disposição para seguir todas as ramificações de uma ideia complicada quanto escrever de forma invulnerável e distante” (ibid., 1996, p. 13). Na verdade, para a antropóloga, é necessário até mais habilidade, uma vez que o pior que pode acontecer em um texto que “purifica” as emoções de quem pesquisa é que ele seja chato, porém, uma autorrevelação chata, desconexa, que não comove quem lê, não é só vergonhosa, mas humilhante. 

Como prevenção de tal situação indesejável, devemos nos lembrar de que “vulnerabilidade não significa que qualquer coisa pessoal valha” (Behar, 1996, p. 14). Tal exposição do eu, que também é espectador, deve conduzir-nos para um lugar que não chegaríamos de outra maneira. A escrita vulnerável é argumento, e não floreio:

To assert that one is a “white middle-class woman” or a “black gay man” or a “working-class Latina” within one’s study of Shakespeare or Santeria is only interesting if one is able to draw deeper connections between one’s personal experience and the subject under study. That doesn’t require a full-length autobiography, but it does require a keen understanding of what aspects of the self are the most important filters through which one perceives the world and, more particularly, the topic being studied. Efforts at self-revelation flop not because the personal voice has been used, but because it has been poorly used, leaving unscrutinized the connection, intellectual and emotional, between the observer and the observed. (Behar, 1996, p. 13)

Behar também nos alerta para os perigos, ou vulnerabilidades, em experimentar “estender os limites da objetividade”. Uma escrita vulnerável é também um abandono do conforto que a ciência oferece. Behar traz o caso de Kay Redfield Jamison, uma pesquisadora que se recusou a esconder como seus próprios transtornos de ansiedade, mania, depressão e psicose foram acionados como parte de seu método para pesquisar o tema da loucura em seu livro sobre distúrbios de humor chamado An Unquiet Mind. Porém, Jamison também escreve que não tem certeza de quais serão as consequências de dar voz pública à sua doença (Behar, 1996, p. 12). Aqui, estamos diante de uma contradição: se uma das principais pretensões da ciência é tornar possível  que o indizível seja dito e abrir fronteiras antes fechadas, por que nos sentimos tão inseguras quanto às nossas revelações? “Quando você escreve de forma vulnerável, outros respondem de forma vulnerável” (ibid., 1996, p. 16). Ao praticar uma escrita vulnerável, estamos invariavelmente criando uma imagem ficcional de nós mesmas, que criará certas identificações a partir dos próprios sentimentos de quem lê. Se é a observadora que serve de guia para os leitores que irão participar da “viagem pelo túnel da antropologia”, qual é a responsabilidade da escritora para com quem se emocionar com sua escrita?

Para Behar, é justamente a questão da responsabilidade que fez a escrita vulnerável irromper na escrita etnográfica. Isso se deu graças à presença de outros corpos, corpos marcados, dentro do fazer científico, bem como às críticas feministas à ciência e tecnologia, que trouxeram do movimento feminista a afirmação de que o “pessoal é político” (1996, p. 28). Nesse cenário, os gêneros “história de vida” e “testemunho” vão se fundindo, revelando o papel das testemunhas e do testemunho como forma de aproximação e transformação da realidade: “a produção de depoimentos tornou-se uma ferramenta terapêutica crucial no tratamento de pessoas que sofreram traumas psicológicos sob o terrorismo de Estado” (ibid. , 1996, p. 27). 

Citando Donna Haraway e sua afirmação de que localização é sobre vulnerabilidade, Behar nos lembra de que a proposta de uma ciência feminista está imersa em uma esperança utópica de reconstruir o que entendemos e praticamos por objetividade, a qual passaria a incluir os “saberes localizados”. Esses seriam considerados tão essenciais que seriam capazes de resistir aos golpes de formas ditatoriais de pensamento. Por enquanto, seguimos experimentando outras formas de crítica, rigorosas, sim, mas não desinteressadas; críticas que não sejam imunes à catarse, que sejam capazes de responder de forma vulnerável (ibid., 1996, p. 175), em especial à difícil questão de como as mulheres devem fazer de outras mulheres as sujeitas de seu olhar sem objetificá-las e, assim, em última análise, traí-las (ibid., 1996, p. 28).

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Imagino que uma trama vulnerável seja feita de um material que requer atenção. A princípio, a palavra que tinha vindo na minha cabeça para descrever este material foi “frágil”, mas essa palavra não é boa. O material da trama vulnerável não é frágil. Fragilidade só pode ser atribuída quando colocada em relação a algo ou alguém. Quando colocado em relação ao que foi carregado na cesta, o material que compõe a trama vulnerável não é frágil: ele é adequado ao propósito da cesta. Por isso, requer atenção. Não devemos sobrecarregar a cesta de trama vulnerável. O que ela contém e o que ela pode carregar é limitado. Para confeccionar essa cesta é preciso delicadeza e destreza manual, ou seja, é preciso conhecimento da técnica e do material empregado. Conhecimento da menstruação e dos efeitos dela no mundo. 

A maioria das vezes que minha máquina de lavar foi para a manutenção, o veredito especialista foi “mau uso”. Eu tinha colocado roupa demais dentro dela. Lembrando o alerta de Ruth Behar sobre como uma escrita vulnerável abre portas para respostas vulneráveis, uma trama que acolhe vulnerabilidade é ela mesma vulnerável. Como em toda confecção delicada, ao longo da produção dessa cesta vários erros foram cometidos, por exemplo, exagerar na dose da força empregada, pesar a mão, provocando rompimentos desnecessários. Nesses momentos, é necessário respirar fundo, se afastar do trabalho, dar um tempinho, beber uma água, retornar, desfazer o mal feito na medida do possível e recomeçar a trançar. Como em toda utilização de ferramentas delicadas, é preciso atenção constante quando se está manipulando uma cesta de trama vulnerável. Não é porque conseguimos produzir uma que ela se manterá inteira. Conforme as coletas foram acontecendo, e os materiais de pesquisa carregados e transformados em experimentos, alguns nós da trama foram se rompendo. Lidar com a vulnerabilidade requer atenção, paciência, e uma certa arte do retoque, de conseguir arrumar a coisa enquanto se está em movimento. 

Nesta pesquisa, produzir e utilizar uma cesta feita de trama vulnerável como ferramenta metodológica serviu para manter a atenção aos limites das relações que eu estabeleci, e cuidado com o que estava sendo evocado, coletado e, posteriormente, experimentado. A cesta de trama vulnerável nos ajuda a produzir conhecimento a partir de vulnerabilidades que não estão somente no polo do “objeto”, mas que constituem a própria dinâmica de produção de conhecimento acadêmico, ou seja, acolher e transportar a vulnerabilidade intrínseca à relação entre o corpo de quem pesquisa e a realidade material-semiótica em que este corpo trabalha. Isso não é fácil, e não existe nenhuma garantia de que rompimentos não acontecerão. Temos que nos preparar para isso.