A “coleta” é uma ação básica para o desenvolvimento de experimentos científicos.  Me recordo de, durante as disciplinas de metodologia na minha graduação em ciências sociais, ser advertida algumas vezes pelos professores que “coletar” dados não era uma ação neutra. Alguns preferiam falar em uma “produção” de dados para enfatizar o caráter subjetivo presente em toda e qualquer aproximação de pesquisa com o mundo. De fato, à primeira vista, o ato de coletar dados parece estar bem perto de uma “objetividade fraca” (Harding, 1993). Porém, utilizar a coleta como estratégia metodológica, a partir de uma abordagem feminista, permite que consigamos nos relacionar com aquilo que estamos pesquisando de modo a escapar, pelo menos um pouco, do polos objetividade-subjetividade. 

Renato Sztutman (2022) fala sobre uma “ciência da coleta”, cujo objetivo final não é a busca por uma verdade totalizante, irrefutável, mas sim a produção de um saber localizado capaz de coletar histórias. Sztutman translada para a crítica feminista da epistemologia a imagem de uma bolsa ou cesta de ficção, produzida por Ursula Le Guin, escritora de ficção científica estadunidense que mantém um profícuo diálogo com Isabelle Stengers. O texto citado por Sztutman se chama “A Ficção como Cesta: Uma Teoria” (Le Guin, 2020), e o drama ali apresentado está resumido na epígrafe acima: a impotência de uma narrativa baseada em fatos cotidianos versus a atração pelo esplendor violento das histórias do Herói. 

Para Le Guin, as histórias sobre “todas as lanças e espadas, as coisas para bater e perfurar e açoitar, as coisas longas e rígidas” são histórias contadas de forma hegemônica não somente nas ficções, mas na própria história da evolução humana. Quando pensamos nos primórdios dos seres humanos, a imagem de um caçador abatendo um mamute figura na nossa mente. Porém, como Le Guin argumenta, esse fato não era algo corriqueiro, pois comer carne de grandes animais não era a base da alimentação desses povos. A coleta e a carne de animais pequenos que podem ser pegos com redes ou armadilhas, por sua vez, sempre foi o que manteve nossos ancestrais de pé. 

“Se você não tem algo onde guardá-la, a comida escapará – até mesmo aquilo que  pode ser tão desprovido de força e recursos como um grão de cereal” (Le Guin, 2020). Se recusando a aceitar a lança-arma como a ferramenta fundadora da humanidade, é no contrapelo da história das nossas origens que Le Guin afirma a radicalidade da cesta, o recipiente onde as coisas são guardadas. A cesta abriga, transporta e guarda não somente o que foi coletado, mas também as outras ferramentas, as usadas na lida do dia a dia (a enxada, o machado, o facão, a pá…) e as armas, “tardias, luxuosas e supérfluas” ferramentas. A casa é um tipo de bolsa maior, e o útero é a cesta que carrega novos seres humanos. A novidade é, portanto, a potência de se unir à bolsa/ventre/caixa/casa/pote para ser capaz de contar “histórias vitais”, histórias de liberdade e alegria, em contraposição às “histórias assassinas” que as armas nos contam.

O pequeno texto de Le Guin condensa preocupações que permeiam esta tese. Como vimos na parte anterior, “para a maioria dos antropólogos, o sangue das mulheres não é o pedaço interessante da estória” (Belaunde, 2006, p. 225). A aparente monotonia do dia a dia, das coisas de casa, custou – e ainda custa – a ser considerada como tema de pesquisa relevante. No caso da antropologia clássica, foram os líderes, espirituais e políticos, os guerreiros, os caçadores, que tiveram suas palavras, ações e formulações a respeito da vida, e são os materiais de trabalho que viraram conhecimento acadêmico (Overing, 1999). Até mesmo os mitos, peças tão importantes para a formulação sobre o que é próprio do ser humano, tiveram a menstruação suprimida de suas longas e intrincadas histórias (Belaunde, 2006).  

Antes de prosseguir, gostaria de abrir um parênteses importante. A leitura que faço do texto de Le Guin não inclui a abstenção de histórias de guerra, apesar do texto permitir esse entendimento. Contar histórias de guerra não é o mesmo que contar a História do Herói. A guerra constitui o que somos, pois perpassa todo nosso modo de vida, incluindo a ciência e a tecnologia, lugar onde esta tese foi gestada. O mito da menstruação contada por Belaunde dá conta de uma dimensão ancestral da violência e do sangue derramado. A leitura feminista que proponho da cesta de Le Guin não ignora essa dimensão da realidade, mas procura apontar os responsáveis pela Guerra, e as lutas que travamos como consequência dela. “Os homens são da guerra e as mulheres são da luta”, como nos lembra a antropóloga Francirosy Campos (2021). Carolina Maria de Jesus (1961) complexifica isso, alertando que são os homens ricos que fazem a guerra e, não por coincidência, normalmente são estes também os Heróis:

Rico faz guerra, pobre não sabe por que (2x) / Pobre vai na guerra tem que morrer (2x) / Pobre só pensa no arroz e no feijão (2x) / Pobre não envolve nos negócio da nação / Pobre não tem nada com a desorganização / Pobre e rico vence a batalha / na sua pátria rico ganha medalha / o seu nome percorre o espaço / Pobre não ganha nem uma divisa no braço (2x) / Pobre e rico são feridos / porque a guerra é uma coisa brutal / Só que o pobre nunca é promovido / Rico chega a Marechal (Maria de Jesus, 1961).

O pequeno texto de Le Guin aponta caminhos muito interessantes, trilhas de fuga para desviarmos da rota única, reta e monótona, chamada de “História da Ascensão do Homem, o Herói”. Com a cesta, podemos focar nas lutas travadas que muitas vezes estão sufocadas pela glória da guerra. A cesta carrega consigo duas operações correlacionadas que são muito frutíferas para construir modos de abordar os problemas sobre os quais esta tese se debruça: a primeira é a coleta de histórias, e a proposta de “ciência da coleta” delineada por Sztutman; a segunda é a confecção de uma outra noção de humanidade a partir dos esforços do passado. 

Em nosso imaginário povoado pela História do Herói, a ideia de coletar o necessário para viver está ligada à uma imagem de diminuição da potência humana, já que nossa espécie dependeria dos caprichos e volatilidade da Natureza e daquilo que Ela, por acaso e sorte, teria a nos oferecer. Certamente uma situação que nos coloca em vulnerabilidade, sem quase nenhuma capacidade de planejamento e ação. É tal pensamento que joga uma parcela considerável dos seres humanos em um estado de “subdesenvolvimento” (Minh-Ha, 1982), já que suas práticas para manter e reproduzir a vida passam longe de tecnologias agrícolas da monocultura linear. Porém, já há algumas décadas, uma série de pesquisas arqueológicas vêm demonstrando que geografias consideradas “intocadas” e “selvagens” são, na verdade, fruto de uma complexa rede de relações humanas e não humanas. A Amazônia vem sendo descrita como “floresta humanizada” (Furquim, 2020), fruto de um intenso processo de coevolução entre seus habitantes:

Entre as vinte espécies de árvores mais abundantes da Amazônia, além do  açaí,  há  diversas  outras  plantas  utilizadas  e  modificadas  por  povos indígenas, como o açaí-do-mato (Euterpe oleracea), o patauá (Oenocarpus bataua), a paxiúba (Socratea  exorrhiza), o murumuru (Astrocaryum murumuru), o breu-branco (Protium heptaphyllum) e a seringueira (Hevea brasiliensis). A ação humana no manejo da  floresta alterou, além das características de algumas espécies como as descritas  acima, a própria composição da floresta, resultado de uma longa sequência histórica  que envolveu a criação de quintais e pomares, roçados, áreas de coleta e diversas outras formas de cultivo/domesticação da paisagem. (Furquim, 2020)

Considerando o contexto das terras em que vivo e em que esta tese foi gestada, nomeadas por algumas disciplinas científicas de “Neotrópicos”, a coleta está longe de ser uma atividade passiva. Ela é fruto de trabalho, coletivo e interespecífico, de ocupações, arranjos e manejos milenares. Este trabalho dificilmente se encaixa no esquema classificatório usado por arqueólogos ou agrônomos e que se vale de conceitos como “domesticação” ou “agricultura”. Tal classificação demarca uma distinção política que justifica e define estágios evolutivos baseados na “marcha inexorável do Homo sapiens em direção à sociedade industrial” (Neves, 2020, p. 96). Na Amazônia convivem práticas de plantios em larga escala, como do açaí e da seringueira (Furquim, 2020), práticas de domesticação de plantas e consumo ancestral, de quase nove mil anos, de plantas que nunca foram domesticadas. Essas dinâmicas não representam “estágios intermediários” de uma história linear de evolução, e sim modos de relações estáveis e permanentes estabelecidas pelos povos tradicionais que ali habitam (Neves, 2020).

O que vemos quando contemplamos as florestas são “paisagens cheias de história”, onde os padrões ecológicos e geográficos de distribuição das vidas ali presentes são quase que inseparáveis das práticas milenares de manejo e cultivo indígenas (Neves, 2020). Podemos pensar a cesta de Le Guin ou os trajetos menstruais com os quais estamos nos encontrando como paisagens cheias de história. Olhamos para elas embasbacadas, confrontadas com um passado radicalmente distante, porém vivo e pulsante – nas tramas trançadas, no sangue que vaza. Atender ao chamado desse passado distante e seguir suas pistas nos leva a criar profecias passadas que nos ajudam a evocar outros futuros.

PARTE 2 _ caixa de ferramentas metodológicas