As experimentações teórico-metodológicas fazem parte das críticas feministas à ciência e tecnologia. Tais críticas possuem um caráter propositivo de ação para além da denúncia, ou seja, afirmam a necessidade de nos engajarmos politicamente na confecção de um trabalho científico diferente daquele que está posto atualmente. Para que isso aconteça, nossa prática no mundo deve também ser outra. Não é possível produzir coisas diferentes trabalhando da mesma forma. A própria infraestrutura da produção científica deveria ser radicalmente transformada, dos laboratórios ao sistema de publicação, passando pelos modos de financiamento da produção científica e por quem de fato é autorizado a produzir conhecimento científico. Um pequeno passo nesse sentido, mas possível, considerando a hipótese da insistência, é tensionar essa [infra]estrutura a partir de experimentações metodológicas que consigam trazer para a pesquisa preocupações políticas feministas anticapitalistas.
A ciência sonhada pelas feministas não é isenta, neutra, transparente. Stengers dialoga com mulheres negras ligadas ao movimento feminista para indicar que o modo de produzir tecnociência proposto dentro da crítica feminista acionada é permeado por desejo, por anseio:
Yearning: a word stemming from Afro-American spirituality, which passes from text to text, gives the appropriate tone for this experimentation. lt conjugates hope, the plaintive cry and desire, that for which the soul at one and the same time has a thirst and does not have the power to define what it thirsts for. Yearning is something that transforms the soul, not something that defines what the soul has to appropriate. (Stengers; Pignarre, 2011, p. 48).
É o sonho-desejo-anseio de transformação profunda e coletiva que move a pesquisa feminista. Ao encarar a pesquisa científica a partir de um posicionamento crítico, anticapitalista, Stengers aponta que corremos dois riscos que acompanham a sensação de que somos incapazes de resistir e lutar: a paranoia e a depressão (Stengers; Pignarre, 2011, p. 49). Cultivar a ânsia desde dentro das metodologias e métodos utilizados pode nos proteger contra a paranoia ao não ter como objetivo um mundo livre de uma vez por todas de todos os males, mas, sim, a produção contextual de caminhos de escape capazes de gestar alternativas para diminuir a potência do que nos oprime. Ansiar também pode nos proteger contra a depressão que acompanha o sentimento de que toda luta na verdade é utopia sem fundamento, uma vez que, através do desejo de transformação transformado em prática de pesquisa, nos engajamos em processos abertos que ativam no presente “a força para experimentar suas possibilidades de vir-a-ser” (ibid.).
Mas, como experimentar outras possibilidades de presente-futuro utilizando as mesmas ferramentas que, sabemos, servem para cercar a experiência comum? Esse é um paradoxo, ou drama, inerente à pesquisa científica: por um lado, o comprometimento político com a recusa de categorias fixas de análise, e, por outro, a natureza de fechamento que não conseguimos escapar ao insistir em produzir conhecimento científico. Classificar, categorizar, criar padrões, teorizar, analisar, etc., são ações que só existem a partir de processos de fechamento e exclusão. Questionada sobre como lidar metodologicamente com isso, Haraway nos lembra que categorias não são congeladas: “nós somos mais inventivas do que isso”, “o mundo é mais vivo que isso, incluindo nós, e sempre há mais coisas para fazer do que o que pensamos” (Haraway, 2004, p. 335). Nós podemos, por exemplo, utilizar metodologicamente uma categoria para perturbar outra, aumentar o volume de algumas e baixar o de outras, fazer com que elas se interrompam. E isso se faz na prática, lidando com a materialidade. Além disso, Haraway nos convida a encarar a opacidade das categorias e permanecer com elas. Ao tentar tornar as categorias transparentes, o trabalho de pensar é que se torna opaco.
Em seu programa de televisão, Donna Haraway encena seu método analítico de forma pedagógica ao desembaraçar um novelo de lã. Dessa forma, ela encena a relação de implicação entre quem analisa e o objeto analisado, e enfatiza a necessidade de escavar tal implicação e produzir conhecimento de modo a articular esse vínculo e as consequências de “se estar no mundo desta forma e não de outra”:
Articulating the analytical object, figuring, for example, this family or kinship of entities, chip, gene, foetus, bomb, etc. (it is an indefinite list), is about location and historical specificity, and it is about a kind of assemblage, a kind of connectedness of the figure and the subject. (…) I think of these as balls of yarn, as gravity wells, as points of intense implosion or as knots. They lead out into worlds, you can explode them, you can untangle them, you can somehow loosen them up. They are densities that can be loosened, that can be pulled out, that can be exploded, and they lead to whole worlds, to universes without stopping points, without ends. (Haraway, 2004, p. 338)
Em sua análise dentro dos STS, Haraway procura demonstrar como as categorias são, elas mesmas, produzidas. Como estão o tempo todo “in-the-making” (Haraway, 2004, p. 208). Assim, “gênero” (ou “raça”, ou “cultura nacional”, ou “ciência”) não é uma classificação fixa que acomoda machos e fêmeas, mas sim uma “relação assimétrica, saturada de poder, simbólica, material e social que é constituída e sustentada – ou não – em práticas naturais-culturais heterogêneas” (ibid.). Essa visão aplicada de Haraway é bem próxima do que defende Nego Bispo (Santos, 2023), para quem a língua do colonizador é uma espécie de barro moldável e que pode ser domado. Para ambos, o uso das categorias deve ser utilitário e propositalmente planejado para determinados fins. Nesse sentido, as escolhas metodológicas de uma pesquisa passam por um pensamento projetual, ou seja, são definidas, sim, a partir das questões e materiais elencados, mas também respondem aos desejos-anseios de transformação que subjazem a intenção de quem pesquisa.