O interesse pela menstruação como tema de pesquisa nas ciências humanas vem se consolidando neste começo do século XXI, em especial entre pesquisadoras feministas, vinculado, principalmente, à saúde, controle de natalidade e educação sexual. Em 2020, foi lançado o livro The Palgrave Handbook of Critical Menstruation Studies, com edição de seis pesquisadoras ligadas a grandes universidades estadunidenses. De acesso aberto e gratuito, a publicação reúne 72 artigos que compõem um monumental volume de mais de mil páginas e faz parte de um esforço em estabelecer o campo de “estudos críticos da menstruação”. O lançamento desse robusto “corpo de conhecimento” foi resultado de uma longa trajetória fundada por pesquisadoras feministas que, enfrentando o estigma que o sangue menstrual carrega, constituíram, na década de 1970, a “Sociedade pela Pesquisa do Ciclo Menstrual” (The Society for Menstrual Cycle Research), de caráter multidisciplinar e ativista (Bobel, 2020, p. 1).

Esse “manual” sobre estudos críticos da menstruação emerge justamente quando o tema da menstruação está em alta  e  integra um crescente interesse da opinião pública e da comunidade acadêmica. O ano de 2015 foi declarado “o ano em que a menstruação veio a público” pela edição de novembro do mesmo ano da revista Cosmopolitan. Naquele ano, o Instagram removeu duas vezes uma fotografia em que a poeta Rupi Kaur aparecia deitada de bruços e de costas, completamente vestida, emaranhada em cobertas e travesseiros, nada polêmico se não fosse por duas pequenas manchas vermelhas, uma no lençol e outra entre suas coxas. Também em 2015 iniciou-se um movimento de retirada de taxas para produtos de higiene menstrual, política adotada por países como Canadá, Malásia, Índia e Austrália (Bobel, 2020, p. 2). 

 O manual da Palgrave é um bom mapa do atual estado da arte das pesquisas em menstruação, sendo que os trabalhos ali apresentados se aproximam do que vem sendo desenvolvido mundialmente na antropologia. Encontramos correspondência entre as principais questões e temas elencados acima com cerca de 3.450 artigos e capítulos de livro listados na plataforma Jstor que contêm as palavras “menstruation” e “anthropology” como indexadores. Desse contingente, vale ressaltar que, além de trabalhos etnológicos com enfoque em menstruação e rituais, e trabalhos com enfoque em questões biomédicas, uma grande parte dos trabalhos dialoga com a menstruação em uma chave de justiça social, partindo do que vem sendo chamado de “Menstrual Hygiene Management”.

O tema da menstruação vem sendo discutido com interesse pela antropologia desde o início da disciplina, já que, com a menstruação, vem a promessa de um processo universalizante que será vivenciado por metade da população humana, a despeito de raça/etnia, classe, religião etc. (Sardenberg, 1994, p. 314). Os aspectos que mais chamam a atenção da antropologia são as práticas de tabus alimentares, proibições sexuais, proibições de acesso a locais de trabalho ou locais sagrados, isolamentos e rituais de purificação e de iniciação (menarca) associados ao ciclo menstrual (Sardenberg, 1994, p. 321), bem como o caráter perigoso do sangue menstrual (assim como do sangue do pós-parto), associado muitas vezes a um veneno poderoso. Porém, nas etnografias clássicas, a menstruação aparece de forma periférica, chegando a passar absolutamente despercebida na leitura formativa que fazemos nos cursos de graduação e pós-graduação.

Em 1994, Cecília Sardenberg fez uma revisão de obras clássicas da antropologia, como os trabalhos de Malinowski e Margaret Mead, buscando pela menstruação. A antropóloga reconhece que a menstruação é entendida como “fato da natureza”, comparando a gravidez e a interrupção de um ciclo menstrual regular com as alterações perceptíveis pelas quais passa a natureza durante as mudanças de estação. Contudo, não a localiza como um “fato biológico”, mas um fenômeno de dimensões sociais e culturais com implicações em outros aspectos da vida social cotidiana. Sardenberg ressalta os traços de “impureza”, “poluição” e “malefícios” que a menstruação carrega em muitos trabalhos etnológicos mais tradicionais. Diante dessas análises, críticas advindas dos movimentos feministas propuseram que estas estariam envoltas em uma ótica judaico-cristã, capaz de transformar práticas como os resguardos e proibições em sintomas como medo, nojo e sujeira, algo que não é confirmado quando se considera o relato de antropólogas mulheres. Esse movimento analítico que foi realizado nos trabalhos etnográficos tradicionais revela a interiorização de crenças ocidentais dos próprios antropólogos (ibid., p. 327).

Contemporaneamente, importantes pesquisas reposicionaram o tema da menstruação na antropologia a partir da análise das associações entre esse processo e o desenvolvimento tecnológico de dispositivos biomédicos de controle. Tais trabalhos são fundamentais para a compreensão de quais são as práticas e vivências possíveis a partir das experiências menstruais hegemônicas em nossas sociedades ocidentais. É crescente o número de pesquisas que se dedicam às práticas ginecológicas tradicionais e também às práticas alternativas, como a ginecologia autônoma e natural. Cito brevemente três trabalhos, apontando questões que certamente serão aprofundadas no decorrer da pesquisa. 

Emily Martin (2001) investigou as metáforas biomédicas sobre o corpo, apontando para um modelo de construção simbólica de um corpo-máquina. A antropóloga estadunidense demonstrou como as metáforas utilizadas para descrever a menstruação caracterizam esse processo como uma “falha” do corpo-máquina feminino, um dispêndio, uma vez que seu objetivo central seria a reprodução. No Brasil, Fabíola Rohden (2001) investigou de que modo a ginecologia constitui-se como uma “ciência da diferença”, ou seja, uma ciência capaz de traçar limites “verdadeiros” entre homens e mulheres, sendo a menstruação um marcador que garantiria uma estabilidade e rigidez nesses parâmetros, bem como uma fonte apropriada para o delineamento de uma série de “desordens” inatas que incidiriam diretamente nas capacidades físicas e psíquicas das mulheres. Já a antropóloga Daniela Manica desenvolveu pesquisas sobre supressão menstrual através do uso de hormônios (2009), destacando as noções de natureza e cultura que emergiram acerca da menstruação e sua relação com o funcionamento dos corpos. Manica continuou trabalhando com menstruação e sangue menstrual, abrindo discussões que envolvem as artes, ciências e políticas menstruais.

Na área da etnologia, gostaria de elencar aqui dois trabalhos que trouxeram importantes fundamentos teóricos para esta pesquisa. O primeiro é a pesquisa desenvolvida por Luisa Elvira Belaunde, apresentada de forma concisa no artigo “A força dos pensamentos, o fedor do sangue. Hematologia e gênero na Amazônia” (2006). A antropóloga revisitou mitos ameríndios sobre a origem da menstruação, demonstrando a impossibilidade de descolar esses mitos de outros que justificam a teoria lévi-straussiana da aliança entre os homens através das mulheres, e a consequente condenação do incesto. Ao aprofundar a presença do fluido sanguíneo nas filosofias ameríndias, somos apresentados a instigantes alteridades que provocam nosso pensamento acerca da diversidade de menstruações possíveis. A menstruação como momento de troca de pele/corpo, o sangue menstrual como substância psicotrópica, as (bio)tecnologias utilizadas para controlar o ciclo menstrual e a menstruação, a constituição dos gêneros como consequência de experiências corpóreas vividas durante a vida e as responsabilidades que a menstruação demanda coletivamente são alguns exemplos das teorias ameríndias que envolvem menstruação e que podem tensionar as nossas próprias concepções quando vamos a campo.

O segundo trabalho é a tese de Isabel Santana de Rose, “Tata endy rekoe – Fogo Sagrado: Encontros entre os Guarani, a ayahuasca e o Caminho Vermelho”. Essa etnografia tematiza a utilização da ayahuasca pelos Guarani da aldeia Yynn Morothi Wherá, descrevendo alianças formadas com não indígenas de movimentos neoxamânicos. Uma cena etnográfica chama a atenção: a antropóloga ficou menstruada no segundo dia de trabalho de campo em que participava do ritual Fogo Sagrado, o qual ainda duraria alguns dias. Esse acontecimento mudou o rumo de sua participação no ritual, uma vez que foi conduzida para opy djatchy, um espaço reservado para mulheres menstruadas (2010, p. 167). Encontramos no texto uma grande atenção na descrição de como se dá o cuidado com esses corpos em situações rituais, oferecendo uma análise em que a menstruação ganha destaque e aparece como um fator que mobiliza não somente os corpos menstruados, mas a comunidade como um todo, o que inclui a lógica arquitetônica desses espaços.

No artigo supracitado de Cecília Sardenberg (1994), a antropóloga começa a desenhar uma “antropologia da menstruação”. Passados quase 30 anos, não podemos afirmar que tal campo se estabeleceu de maneira definitiva, ou mesmo que ganhou contornos mais bem traçados e programas e objetivos para pesquisas a longo prazo. Porém, é inegável que, nos primeiros anos da década atual, vivemos no Brasil uma explosão de pesquisas em antropologia e disciplinas correlatas que têm como tema central a menstruação, como veremos na próxima seção. Podemos ver tal movimento ganhar corpo nas subáreas da antropologia da ciência e tecnologia e da etnologia. No primeiro caso, o ano de 2021 foi simbólico, uma vez que os dois encontros acadêmicos de maior relevância na área, a 4S, em nível internacional, e a ReACT, em nível nacional, hospedaram de forma inédita em sua programação grupos de trabalho que abrigavam pesquisas em menstruação. Seguindo essa tendência, em 2023 também tivemos na RAM um grupo de trabalho inteiramente dedicado à antropologia da menstruação.

Ao tomar a menstruação como tema central, as pesquisas antropológicas são capazes de revelar a heterogeneidade de práticas e visões de mundo que acompanham esse processo. Ao colocar lado a lado os trabalhos cujo foco são as ciências e tecnologias e os de cunho etnográfico, nos deparamos com questões que vazam para muito além de algo que atinge apenas certos corpos, uma vez que emergem problemas relacionados à configuração dos gêneros, às divisões individuais e coletivas de responsabilidade e cuidados, às teorias cosmopolíticas de criação e manutenção da vida, entre outros. 

Como forma de se aproximar dos materiais dessa pesquisa e seguir por um caminho um pouco mais firme, apresento a seguir um estado da arte sobre a menstruação como tema de pesquisa nas ciências humanas no Brasil. Como demonstrarei, a maior parte dos trabalhos encontrados estão relacionados com a antropologia e, por isso, a paisagem apresentada ganhou contornos mais próximos a esta disciplina, oferecendo um panorama mais abrangente sobre a intersecção entre antropologia e menstruação.

PARTE 1 _ materiais

| Estado da arte - menstruação como tema de pesquisa nas ciências humanas no Brasil >