Um dos primeiros trabalhos ao qual me dediquei na pesquisa foi o levantamento sistemático das produções acadêmicas relacionadas ao meu tema de pesquisa, não somente para construir um estado da arte, mas também como mapeamento de possíveis interlocutoras. O que apresentarei aqui é uma análise sintética do que pude encontrar, selecionar e sistematizar. Nessa primeira aproximação, o objetivo central foi mapear como a menstruação aparece em produções acadêmicas brasileiras vinculadas, teoricamente e/ou metodologicamente, às grandes áreas das ciências humanas e sociais. Não foi estabelecido um recorte temporal a priori, sendo que a publicação mais antiga data de 1994 e a mais recente de 2022. Os trabalhos selecionados são produzidos e publicados em território brasileiro. Não houve um recorte de língua a priori, sendo que os trabalhos selecionados são em português e espanhol. Não houve nenhuma restrição quanto ao gênero ou nacionalidade das autoras. 

O “estado da arte” é uma pesquisa de caráter bibliogŕafico, inventariante e descritivo que mapeia tal produção acadêmica e visa discutir quais aspectos e dimensões vêm sendo privilegiados nas pesquisas realizadas (Ferreira, 2002, p. 258). Esse esforço de ordenação não busca ser exaustivo, mas sim produzir, a partir do nosso conhecimento situado, uma imagem do momento atual que permita perceber movimentos, tendências, encruzilhadas e transformações nas produções acadêmicas, ou seja, uma ferramenta para estimular criatividade na busca por lacunas e alianças. 

Ainda que sistemática, esta pesquisa é composta por fragmentos heterogêneos. Parte das buscas foram feitas em repositórios institucionais digitais, mas parte das pesquisas foram selecionadas a partir de experiências empíricas no campo. Além disso, foram utilizados os resumos e palavras-chave tanto para a seleção dos trabalhos quanto para a análise, e ambas as fontes não apresentaram qualquer tipo de padronização, variando muito de acordo com as pessoas autoras das pesquisas. Ou seja, a imagem que este estado da arte produziu não é uma cadeia estanque, na realidade, está mais próxima de uma rede permeada por uma complexidade de fios entrecruzados, sendo apenas uma das tantas imagens possíveis de serem produzidas (Ferreira, 2002, p. 270).

Foram realizadas buscas sistemáticas nas plataformas Scielo e Jstor (selecionando produções do Brasil), em repositórios institucionais de todas as universidades públicas e algumas universidades particulares. Nesses casos, busquei as palavras “menstruação” e “menstrual” como descritores nos títulos, resumos e palavras-chaves. Para selecionar os artigos, dissertações e teses, considerei as áreas relacionadas (ciências sociais, antropologia, sociologia, história etc.), bem como a utilização de métodos de pesquisa comuns às ciências sociais, como análise de discurso e etnografia, o que permitiu agregar trabalhos de áreas como design, comunicação, enfermagem etc. Além disso, considerei neste levantamento trabalhos que não apareceram nas pesquisas, mas que tenho contato graças à pesquisa e também a fluxos como a participação na Coletiva Vazantes de pesquisadoras da menstruação e a participação no ST “Sangue, técnica e multiplicidade: vazantes de menstruações diversas” durante a VIII Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia (ReACT), realizado em novembro de 2021 com coordenação de Daniela Tonelli Manica e Luísa Elvira Belaunde. 

Para a análise do material levantado, organizei os trabalhos em cinco eixos, sendo eles: revisão e análise teórica; análise simbólica/interpretativa; educação e arte; tecnociência e produtos menstruais; e conhecimentos sobre cuidados com o corpo. Para a distribuição dos trabalhos nestes eixos, levei em consideração o modo como a menstruação foi majoritariamente enfocada, porém, é importante frisar que estes eixos não são estanques e que os trabalhos muitas vezes se contaminam, indomáveis a uma categoria fixa. Optei por pontuar aproximações entre as produções selecionadas e apresentar com mais profundidade alguns trabalhos de cada eixo, com o objetivo de traçar um panorama dos tipos de pesquisa, suas questões, metodologias e resultados.

Algumas considerações sobre o levantamento

O levantamento de dados sobre produções acadêmicas no Brasil apresenta uma série de dificuldades e limitações. Durante a pesquisa que realizei, a principal questão foi a impossibilidade de utilização do repositório “Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações”, que apresentava instabilidade e não permitia a filtragem dos resultados. Sem um ente centralizado das teses e dissertações, procurei manualmente os repositórios das universidades. Essa situação impõe certos limites à capacidade de levantamento dos dados, assim como o fato de trabalhos mais antigos não aparecerem nos repositórios institucionais. O mesmo acontece com os artigos disponibilizados na plataforma Scielo. 

Outra questão limitante que percebi com certa recorrência foi a ausência dos termos descritores “menstrual” e “menstruação” em trabalhos que tratam sobre o tema. Consegui adicionar alguns trabalhos, pois já os conhecia, e outros trabalhos encontrei a partir do próprio sistema de buscas dos repositórios institucionais, que permitem buscar palavras-chaves em todo o corpo do texto. Esse tipo de ferramenta é muito interessante e permite não somente agregar mais dados ao levantamento, mas também dimensionar como, quando e quanto o tema da menstruação aparece nas teses e dissertações, experimentação que pode trazer resultados muito interessantes. 

Como resultado das pesquisas, a maioria absoluta dos trabalhos que estavam indexados com as palavras “menstrual” e “menstruação” eram das áreas das ciências da saúde. Na plataforma Scielo, por exemplo, foram 460 produções que continham aqueles marcadores e foram publicadas em revistas brasileiras. Ao filtrar os trabalhos indexados como “ciências humanas”, o resultado cai drasticamente para 21 publicações. A grande maioria dos trabalhos está vinculada às áreas como ginecologia, obstetrícia, psiquiatria, neurociência, endocrinologia, como pode ser observado neste gráfico fornecido pela plataforma:

Web of Science - Áreas Temáticas Brasil para os indexadores “menstrual” e “menstruação”

Fonte: Plataforma Scielo

Após a leitura dos resumos e seleção, foi possível reunir 60 produções acadêmicas, entre artigos (26), trabalhos de conclusão de curso (7), dissertações (21) e teses (6). Com relação às áreas, a grande maioria dos trabalhos é interdisciplinar (25), ou de antropologia (18), contando também com trabalhos nas áreas de educação/ensino (3), artes/dança (2), design (2), enfermagem (2), saúde coletiva (2), biologia (1), história (1), medicina (1), psicologia (1), publicidade e propaganda (1), serviço social (1). A maioria das produções são vinculadas às instituições do Sudeste e Sul do país, com prevalência dos estados de Rio de Janeiro (12), São Paulo (12), Santa Catarina (9) e Rio Grande do Sul (7).

Temporalmente, as produções estão distribuídas da seguinte forma: década de 1990 (1), década de 2000 (13), década de 2010 (32) e década de 2020 (14). É interessante notar o aumento exponencial do interesse pelo tema a partir da década de 2010, ainda que possa haver uma distorção nesses números devido às dificuldades de buscas nos repositórios. Porém, considerando apenas a década atual, é impressionante que, em dois anos, já tenhamos quase metade do total de publicações de toda a década anterior. 

Outra situação que podemos inferir a partir da análise do levantamento é que a maioria absoluta das produções foi confeccionada por mulheres, sendo apenas um dos artigos e um trabalho de conclusão de curso assinados por homens. Uma hipótese para o aumento dos trabalhos sobre menstruação é justamente o aumento de mulheres nas pós-graduações, algo que vem ocorrendo nos últimos tempos, como mostrou o relatório anual da CAPES de 2021, que apontou que, dos beneficiários, 58% são mulheres.

Podemos ter uma visão mais abrangente dos enfoques que essas produções dão ao tema da menstruação quando analisamos as palavras-chave indicadas pelas autoras. Para tanto, produzi esta nuvem de palavras, compilando todos os termos utilizados, que foram arranjados graficamente conforme a quantidade de vezes que apareceram:

Nuvem de palavras com palavras-chave indicadas pelas autoras nos trabalhos analisados

Fonte: autoria própria

Os termos que se destacam são: “gênero”, “mulher”, “corpo” e “feminino”. Ao acionarem tais conceitos, as produções se inscrevem em discussões contemporâneas. É interessante notar o destaque do termo “corpo”, e como esse termo aponta para uma preocupação com certa materialidade que perpassa conceitos como “gênero”, “mulher” e “feminino”. A partir dessa nuvem de palavras podemos pensar que a menstruação como tema de pesquisa no Brasil está se inscrevendo em uma zona controversa que considera ao mesmo tempo perspectivas sociais e biológicas, tensionando a fronteira entre as duas em menor ou maior medida. 

Na imagem, também podemos notar dois grandes clusters de palavras-chave que apontam para duas grandes abordagens temáticas da menstruação. Por um lado, temos uma série de trabalhos que investigam a menstruação a partir das implicações sociotécnicas do viés biomédico, predominante no modo de vida ocidental capitalista (medicalização, tecnologia, consumo, hormônios, ciência). Do outro lado, muitos trabalhos de cunho etnológico enfocam o tema da menstruação a partir das implicações cosmológicas desse processo na vida cotidiana de diferentes povos e suas relações com cuidados com o corpo, em especial os resguardos, e com o xamanismo (indígena, índios, cosmologia, xamanismo). 

A nuvem de palavras-chave serviu como um guia visual para organizar os eixos e blocos criados para a sistematização e análise do material levantado. O desenho da sistematização ficou da seguinte forma:

EIXOBLOCONÚMERO DE TRABALHOS
Eixo 1: Revisão

Revisão e estado da arte
Bloco 1

Revisão e estado da arte
3
TOTAL3
Eixo 2: Análise simbólica/interpretativa

Valores e significados da menstruação para as mulheres
Bloco 1

Valores, significados, percepções, crenças e saberes das mulheres sobre menstruação de uma maneira mais geral
4
Bloco 2

Períodos específicos relacionados à menstruação, como a TPM e a menopausa
3
Bloco 3

Análise da circulação de discursos sobre menstruação em meios como a grande mídia, materiais didáticos e comunidades em redes sociais
3
TOTAL10
Eixo 3: Educação e arte

Menstruação a partir de óticas artísticas e pedagógicas, com objetivos de ampliar a discussão e a visibilidade sobre o tema
Bloco 1

Propostas de cunho educacional, seja no âmbito da educação formal, com propostas de sequências didáticas ou atividades pedagógicas, seja no da educação informal, com propostas de sites informativos
3
Bloco 2

Produções ou análises de criações artísticas que têm como centro a menstruação e o sangue menstrual
4
TOTAL7
Eixo 4: Tecnociência e produtos menstruais

Relações entre menstruação, conhecimento, tecnociência e mercado
Bloco 1

Produtos para contenção e controle do sangue menstrual, como absorventes e coletores menstruais
5
Bloco 2

Entrada no mercado e aderência dos menstruapps, e os impactos da utilização desses artefatos tecnocientíficos no cotidiano de pessoas que menstruam
2
Bloco 3

Relações entre menstruação e hormônios
7
Bloco 4

Investidas biomédicas sobre a menstruação e o estabelecimento da ginecologia como ciência responsável pelo escrutínio dos corpos com útero
2
Bloco 5

Práticas de resistência ao domínio biomédico dos corpos menstruantes
8
TOTAL24
Eixo 5: Conhecimentos sobre cuidados com o corpo

Menstruação a partir dos conhecimentos sobre cuidados com o corpo em diferentes culturas
Bloco 1

Religiões afro-brasileiras
3
Bloco 2

Etnologia ameríndia em que a menstruação não é exatamente o centro dos questionamentos, porém, ocupa lugar de destaque e, em muitos casos, perpassa transversalmente as temáticas centrais, como xamanismo, corpo, cuidados com a saúde etc.
7
Bloco 3

Etnologia ameríndia que trata diretamente sobre menstruação e sangue menstrual
6
TOTAL16
TOTAL GERAL60

Uma última observação: o termo “antropologia” aparece em destaque e não é acompanhado por nenhum termo-irmão disciplinar. Ao analisar as produções levantadas, muitas das quais se filiam às áreas interdisciplinares, como ciências sociais, assim como as produções que se filiam às áreas das ciências da saúde, como enfermagem, foram produtos de metodologias familiares à antropologia, em especial a etnografia, com seu característico trabalho de campo. Ainda que durante o levantamento tenham sido aplicados critérios amplos de seleção das produções, houve pouquíssimos resultados de outras áreas das ciências humanas, como sociologia, história etc. Não houve a ocorrência de nenhum trabalho nas áreas de ciência política ou direito, por exemplo. Tais resultados indicam, a princípio, uma maior acomodação do tema da menstruação na zona de contato da antropologia, assim como a escolha do trabalho de campo e a escrita etnográfica como metodologia de pesquisa, o que reforça a ideia de que o crescimento e a consolidação da menstruação como tema de pesquisa científica podem estar ligados ao reconhecimento e validação da dimensão da experiência corporal – e menstrual – de quem pesquisa. 

Eixo 1: Revisão

Como a progressão de produções ao longo do tempo indica, a menstruação como tema de pesquisa vem se consolidando apenas recentemente. Sendo assim, ainda são poucos os trabalhos que se dedicam à revisão e ao estado do campo. Nesse eixo, podemos encontrar apenas três produções, sendo dois artigos e um trabalho de conclusão de curso. 

Publicado na revista Estudos Feministas em 1994, o artigo “De sangrias, tabus e poderes: a menstruação numa perspectiva sócio-antropológica”, da antropóloga Cecília Sardenberg, é uma produção pioneira. Com essa revisão de diversas etnografias clássicas, Sardenberg começou a desenhar a proposta de uma “antropologia da menstruação”, revelando a presença do tema, ainda que de forma tangencial, em produções importantíssimas para a formação em antropologia. A autora ancora sua argumentação sobre o interesse da antropologia na menstruação a partir da constatação de que esse processo é um bom ponto de observação das tensões entre “natureza” e “cultura”, sendo possível analisar teorias nativas sobre gravidez e concepção, sobre sangue menstrual e suas afetações cosmológicas no cotidiano, sobre as complexidades das relações de gênero estabelecidas etc.

Sardenberg afirma que, a partir de uma perspectiva socioantropológica da menstruação, é possível observar as relações multilaterais, múltiplas e de mútua determinação entre fatores biológicos e culturais da menstruação. A partir da revisão realizada, a autora também aponta para a relação entre as ordens prático-simbólicas que acompanham a vivência da menstruação em diversas culturas com as ideologias e relações sociais de gênero (1994, p. 344). Podemos considerar tal correlação pioneira no Brasil, investigada posteriormente com maior profusão em pesquisas junto a mulheres em contextos urbanos e, só mais recentemente, em pesquisas de cunho etnológico, nas quais temas que envolvem relações de gênero estão se consolidando.

Apesar de não aparecer explicitamente em seu artigo, a análise de Cecília Sardenberg possui fortes influências feministas. Em entrevista sobre sua trajetória profissional, a antropóloga conta que realizou sua formação integralmente nos EUA, durante um período de vinte anos (1977 - 1997). Foi lá que Sardenberg teve contato com o movimento feminista, inserindo-se nas discussões a partir de vivências de desigualdade nos trabalhos que exerceu como comerciária e bancária. No início da década de 1980, Sardenberg se muda para Salvador e assume a cadeira de Teoria Antropológica, no Departamento de Antropologia da UFBA, sendo ali lotada até sua aposentadoria, em 2016. A antropóloga conta que integrou o Grupo Feminista Brasil Mulher, primeira organização feminista de Salvador, além de integrar o grupo fundador, na UFBA, do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher - NEIM (Casagrande, 2017). Possivelmente essas vivências e a formação nos EUA tiveram influência no pioneirismo de Sardenberg em abordar a menstruação a partir de uma perspectiva socioantropológica no Brasil. 

Em seu artigo de revisão, Sardenberg aponta para a menstruação como um ponto em uma extensa rede de relações que perpassa tempo (menarca, menopausa, gravidez, aborto) e espaço (rituais e resguardos), e que aciona conhecimentos sobre agentes cosmológicos e materiais, como sangue e esperma. O tema da menstruação, portanto, flui e mancha outros tópicos, em correlações íntimas. Publicado mais de vinte anos após o artigo de Sardenberg, outra produção de revisão e análise teórica que traz à tona essas ligações fortes da menstruação é “Estranhas entranhas: de antropologias, e úteros”, publicada em 2018 na revista Amazônica pela também antropóloga Daniela Tonelli Manica.

O artigo é resultado de fabulações a partir de duas iniciativas que tiveram como foco discutir o útero e seus desdobramentos a partir de um enfoque antropológico: o evento “Estranhas entranhas: as múltiplas ontologias do ‘útero’”, organizado por Manica e por Luisa Elvira Belaunde, e realizado no IFCS/UFRJ em novembro de 2016; e também a disciplina “Antropologia do(s) Útero(s)”, ministrada no PPGAS/UnB pelas professoras Soraya Fleischer e Rosamaria Carneiro, em 2017. O artigo faz parte de um dossiê que reúne os trabalhos finais realizados no contexto daquela disciplina (Manica, 2018, p. 24). 

Ao longo do artigo, as menstruações caminham lado a lado com os úteros através dos fluxos do sangue menstrual. Se no artigo de Sardenberg somos instigadas a pensar nas complexidades das relações nas quais a menstruação está imersa através da análise de etnografias clássicas, no artigo de Manica enfrentamos uma abertura radical do que é e do que pode ser menstruar, multiplicando o entendimento de corpo através da leitura de pesquisas contemporâneas de campos diversos, como as artes, a literatura, a antropologia da ciência e tecnologia e a etnologia. Nesse artigo, a presença da crítica feminista é explícita e fundante e, com base nessa linha teórica, está colocado o principal desafio de propor o útero como centro de atenção na produção de conhecimento científico, a saber, o desafio de tentar dar conta da multiplicidade de experiências, o que inclui os diferentes corpos e as questões de desigualdades, diferenças, hierarquias etc. (Manica, 2018, p. 35). 

Manica sustenta tal abertura à multiplicidade valendo-se de uma série de pesquisas que demonstram a plasticidade e a fluidez dos corpos. Da antropologia da ciência e tecnologia, Manica traz o trabalho de Emília Sanabria sobre hormônios e menstruação em Salvador, bem como o conceito de “corpos plásticos” cunhado por ela. Ao dialogar com a etnologia, a antropóloga retoma o trabalho de Luisa Elvira Belaunde e aponta para a materialidade do sangue menstrual e sua capacidade de abrir o corpo para transformações cosmológicas, algo que veremos mais adiante. 

No artigo de Sardenberg encontramos algumas críticas pontuais ao modo como antropólogos – em sua maioria homens – deixaram sistematicamente de abordar a menstruação como tema de suas etnografias, passando ao lado do sangue menstrual e evitando-o. Tais críticas ganham centralidade no artigo de Manica, que evidencia a importância de, ao abordar temas como menstruação, útero, sangue menstrual, gravidez etc., sempre nos mantermos alertas a problemas como desigualdades e violências (de gênero, raciais, de classe etc.) e localizá-los, ou seja, delimitar a especificidade de tais violências como decorrência de certos contextos históricos e sociais, como o que ocorreu no caso do controle de corpos com útero com a ascensão e consolidação da ginecologia e do escrutínio biomédico dos corpos. 

No final do artigo, Manica faz uma defesa da importância de se pesquisar temas como menstruações, úteros e maternidades. Ainda que não esteja explícito no artigo, a defesa é dirigida especialmente às acusações de que tais temas seriam limitantes, uma vez que seriam endereçados a apenas uma parte da população humana. Muitas vezes colocadas de forma sutil e implícita em questionamentos despretensiosos, tais críticas ainda são muito comuns na apreciação pública de produções que centralizam questões que, desse ponto de vista, seriam interessantes apenas para “mulheres”. Manica propõe que, se partirmos de uma leitura do perspectivismo informada pela crítica de gênero, falar desses assuntos é falar do humano em “outra” versão, uma versão “não antropocêntrica, nem racista, machista, misógina, homo/lesbo/trans/fóbica, capacitista e todas as demais limitações que cabem às ações conservadoras com as quais temos sido confrontadas” (2018, p. 26). As pesquisas que seguem por esses caminhos comporiam, portanto, um esforço em desvincular determinações nas relações entre corpo e gênero, abrindo a produção científica de conhecimento para as diversas formas possíveis de vida e suas expressões de afetos e corporalidades. 

No levantamento realizado, produções mais recentes (alocadas nos demais eixos de análise) acompanham as críticas, fundamentações teóricas e encaminhamentos político-metodológicos expostos por Manica, como é o caso do trabalho de conclusão de curso intitulado “Sangrar é político: diálogos acerca da pobreza menstrual na vida de meninas pretas e pardas”, apresentado em 2022 por Elaine Pereira de Sousa e Letícia de Oliveira Silva para a obtenção do título de Bacharela em Serviço Social na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. 

No trabalho de conclusão de curso, Sousa e Silvia fazem um balanço do estado atual das discussões sobre pobreza menstrual, termo que vem ganhando muito espaço na opinião pública nos últimos anos. As autoras trazem definições sobre o conceito de pobreza e discorrem sobre a proliferação de pobrezas no sistema capitalista. Ao colocarem lado a lado revisões teóricas sobre pobreza menstrual e pesquisas sobre a situação socioeconômica das meninas e mulheres pretas e pardas no Brasil, as autoras apontam para o agravamento de desigualdades e a ausência de acesso à educação sexual e menstrual e a infraestruturas básicas de saneamento e higiene. As autoras também analisam uma série de leis que vêm sendo discutidas no cenário político nacional e que visam garantir “dignidade menstrual” através de ações como distribuição gratuita de absorventes higiênicos em equipamentos do estado (escolas, unidades básicas de saúde), garantias de acesso à educação e saneamento etc. 

Como as autoras apontam (Sousa; Silva, 2022, p. 66), essa movimentação em prol de maior visibilidade em relação às questões sobre menstruação e sua implicação na vida cotidiana de meninas e mulheres, em especial aquelas em situação de vulnerabilidade, está apenas começando em território nacional. Esse campo certamente é fértil para muitas pesquisas futuras, e como o levantamento realizado demonstra, a produção de conhecimento científico sobre menstruação vive um momento de expansão e consolidação nas áreas de ciências humanas e sociais no Brasil. 

Eixo 2: Análise simbólica/interpretativa

Neste eixo, foram reunidas onze produções, entre artigos, dissertações e teses, que têm em comum uma abordagem de pesquisa que busca investigar valores e significados da menstruação para as mulheres. Ao abrir um espaço de escuta para mulheres e suas vivências da menstruação, esses trabalhos consideram algo que antes estava ausente nas pesquisas: a polifonia dessas experiências. 

Em uma primeira aproximação com o material levantado, foi possível agrupar os trabalhos em três blocos, de acordo com os temas e questões perseguidas.

No primeiro bloco, temos trabalhos que investigam valores, significados, percepções, crenças e saberes das mulheres sobre menstruação de uma maneira mais geral. Um exemplo é a dissertação “Percepção e significado da menstruação para as mulheres”, apresentada em 2003 por Maria Clara Estanislau do Amaral, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da UNICAMP. Ainda que filiado a uma disciplina vinculada às ciências da saúde, esse trabalho foi adicionado ao levantamento, pois aborda a menstruação a partir de metodologias qualitativas, utilizando entrevistas em profundidade com 64 participantes, realizadas coletivamente em grupos focais. Para analisar o resultado das entrevistas, a pesquisadora utilizou um recurso muito interessante, o software Ethnograph V5.0, que a auxiliou a organizar as transcrições em categorias de análise. 

A base teórica para a análise do conteúdo foi o “interacionismo simbólico”, que tem como objetivo focalizar o significado que as pessoas atribuem a eventos da “realidade”, como a menstruação, que, a partir dessa abordagem, seria um evento “natural” ao qual as populações humanas se dedicam a atribuir os mais diferentes significados. Tal separação entre a materialidade da existência da menstruação e a elaboração intelectual sobre a vivência desse processo é uma acepção epistemológica comum entre a maioria dos trabalhos desse eixo.

Segundo Amaral, da análise de seu material foi possível apreender a associação entre menstruação e tópicos como saúde, feminilidade, fertilidade e juventude. Com relação aos sentimentos acionados, a maioria das participantes descreveu a menstruação como desagradável, incômoda e limitadora. A menarca foi entendida como marca da passagem do tempo de criança para mulher, trazendo consigo o despertar da sexualidade. Os tabus, aqui entendidos como uma lista de proibições, foram considerados em extinção e lidos como algo que tratava a mulher menstruada como vulnerável e perigosa. A amenorreia figurou como uma agressão, e a menopausa foi associada à doença e à perda de juventude e fertilidade. A conclusão final da pesquisadora foi a de que a menstruação tem um significado ambíguo, sendo ao mesmo tempo algo inerentemente ruim e parte da natureza da mulher, aquilo que muitas vezes a define.

No segundo bloco estão reunidos trabalhos que abordam momentos específicos relacionados à menstruação, como a TPM e a menopausa. Outro trabalho da área das ciências da saúde, dessa vez da enfermagem, prioriza a elaboração das mulheres sobre suas experiências menstruais, dessa vez em relação à menopausa. A tese “Deixar de ser mulher: conhecimento e significado cultural da menopausa”, apresentada em 2007 por Gabriela Maria Cavalcanti Costa ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade de São Paulo, é resultado de uma pesquisa referenciada em bases teórico-metodológicas da antropologia médica, utilizando o método etnográfico com o objetivo de compreender o conhecimento e a vivência da menopausa para um grupo de 12 mulheres, que participaram de entrevistas em profundidade e vivências com arte e desenho.

A partir das atividades realizadas, a pesquisadora procurou observar as interpretações individuais e construídas coletivamente a respeito da menstruação e menopausa, desenhando o que chamou de “temas culturais” mais discutidos, sendo eles: a menstruação caracteriza a mulher e define seu papel; o corpo emite os sinais; o poder de Deus determina as funções do corpo; a menopausa como evento natural do corpo; e a menopausa e o deixar de ser mulher. Assim como no trabalho apresentado anteriormente, a pesquisadora aponta para uma percepção da menstruação e menopausa como “experiências humanas femininas” e segue a rede de significados que as mulheres tecem para compreender essas experiências. Como conclusão, a pesquisadora afirma que o conhecimento sobre a menopausa é um processo construído ao longo da vida, resultado da realidade cultural e social, e que tal processo deve ser considerado no cuidado pelos profissionais de saúde.

O terceiro bloco é formado por produções que utilizam como método principal a análise da circulação de discursos sobre menstruação em meios como a grande mídia, materiais didáticos e comunidades em redes sociais. A dissertação “Tá de chico? estigmas do sangue na mídia e na escola”, apresentada em 2021 por Caroline Luiza Willig ao Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais da FEEVALE, é fruto de uma pesquisa cuja metodologia central foi a análise de conteúdo junto a materiais midiáticos e discursos de professores e professoras das séries finais do ensino fundamental de uma escola pública, localizada em Novo Hamburgo/RS. A pesquisadora partiu da afirmação da existência de estigmas que envolvem o sangue menstrual para propor-se a investigá-los, buscando-os no corpus de discursos que pôde organizar. De acordo com a metodologia escolhida, o conteúdo foi analisado a partir das palavras mais recorrentes, e tais palavras foram investigadas a partir da noção de estigma, resultando nas seguintes categorias: nojo ou sujo; desconforto e falta de aceitação; instabilidade emocional e selvageria; inutilidade; doença ou maldição; vergonha e silenciamento; feminilidade.

Como conclusão de sua investigação, em uma análise embasada nos estudos feministas, ecofeministas, decoloniais e queer, Willig destaca o contraste entre a maneira como os assim chamados “estigmas” apareciam nos discursos midiáticos e como os mesmos assuntos se revelavam nas experimentações junto a educadores e educandos. No primeiro caso, a menstruação aparece vinculada à “predestinação”, envolvendo irritabilidade, desconfortos etc. Ao adentrar a escola, a pesquisadora viu a realidade se complexificar e emergirem intersecções que permeiam as diversas trajetórias de adolescentes que menstruam. Ao confrontar a polifonia das falas dentro da escola com um certo tom monótono do discurso sobre menstruação na mídia, a pesquisadora aponta para a educação sexual como uma forma de ampliar o entendimento da menstruação para além do que é veiculado pelas grandes mídias. 

Eixo 3: Educação e arte

Neste eixo foram reunidas produções que investigam e experimentam a menstruação a partir de óticas artísticas e pedagógicas, com objetivos de ampliar a discussão e a visibilidade sobre o tema. Além disso, os trabalhos aqui reunidos têm em comum um caráter propositivo de novas relações com a menstruação e o sangue menstrual, a fim de promover uma transformação positiva no modo como esses temas vêm sendo tratados, seja em âmbito familiar, escolar ou público. São sete trabalhos, entre artigos, trabalhos de conclusão de curso e dissertações. Os trabalhos foram organizados em dois blocos, apresentados a seguir.

O primeiro bloco é formado por produções que, através de pesquisa, culminaram em propostas de cunho educacional, seja no âmbito da educação formal, com propostas de sequências didáticas ou de atividades pedagógicas, seja no da educação informal, com propostas de sites informativos. Publicado em 2006, o artigo “Saberes sobre menstruação em discussão”, da matemática Silvia Regina Silva Ribeiro, aborda a instigante relação entre matemática e menstruação, apresentando uma pesquisa realizada junto a meninas adolescentes do Ensino Fundamental II de uma escola estadual no Rio de Janeiro. A autora demonstrou que as adolescentes correlacionaram matemática e menstruação a partir de um conhecimento prático no manejo do ciclo menstrual, que se dava através de diferentes formas e ferramentas – controle mental, controle por medicamentos, registros escritos em diários e agendas.  

A autora investigou como tais habilidades foram adquiridas: algumas meninas afirmaram que aprenderam com as mães, outras com ginecologistas, outras na escola, durante as aulas de educação sexual, enquanto outras afirmaram que simplesmente começaram sozinhas a registrar os ciclos menstruais e calcular os dias férteis e, principalmente, as prováveis datas das próximas menstruações. Tal espontaneidade surgiu de uma vontade de saber. Em suas considerações finais, Ribeiro nos provoca a pensar sobre o fato de a matemática não considerar as mulheres como sujeito e objeto de sua história. A pesquisadora afirma que esse apagamento está presente, por exemplo, na pouca divulgação de mulheres matemáticas e suas contribuições para o desenvolvimento da disciplina. O apagamento está inclusive na etnomatemática, ramo do conhecimento que se ocupa das matemáticas produzidas e compartilhadas socialmente, no qual há pouquíssimos trabalhos que abordam as matematizações das mulheres. 

A autora traz provocações muito interessantes advindas da arqueologia para enfatizar a conexão entre matemática e menstruação, por exemplo, a afirmação de que as mulheres seriam as primeiras matemáticas, uma vez que fragmentos de ossos pré-históricos com marcas mostram como as mulheres contavam seus ciclos a partir da lua e, desse modo, marcavam o tempo. Ribeiro apresenta uma instigante possibilidade de interdisciplinaridade na formação de crianças e jovens. Ao propor o ensino de confecção de calendários menstruais como parte da formação em matemática, a autora advoga por um ensino científico capaz de dialogar não somente com questões práticas do dia a dia, mas, sobretudo, que seja capaz de transformar a si mesmo a partir de avanços nos direitos e no âmbito da justiça social, como os impulsionados pelos feminismos.

O segundo bloco é formado por trabalhos que produziram ou analisaram criações artísticas que têm como centro a menstruação e o sangue menstrual. São produções que investigam o potencial performativo que surge quando esses temas que, como já pudemos observar nos eixos acima mencionados, são sistematicamente invisibilizados e silenciados. O ato, corajoso, de trazer a menstruação para o centro das atenções provoca uma série de desdobramentos que são abordados nos trabalhos aqui reunidos. A dissertação “O corpo feminino como metáfora do tempo em performance arte”, de Camila Matzenauer dos Santos, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFSM em 2019, teve como objetivo experimental proporcionar visualidade à menstruação de uma maneira a enfatizar esse processo relacionado à passagem do tempo nos corpos menstruantes. 

A escolha pela performance como modo de investigação e proposta artística deu-se graças ao potencial dessa manifestação em subverter questões sociais latentes e enrijecidas. Para tanto, a pesquisadora valeu-se de uma pesquisa de campo conduzida por uma autoetnografia como modo de aproximar experiências distintas de situações temporais no ciclo de vida, como a menarca, a gravidez, o parto, o puerpério e o consumo de pílulas anticoncepcionais. A pesquisadora realizou experimentações inovadoras e criativas, como recolher depoimentos anônimos sobre menarca e menstruação em banheiros femininos e, a partir desse material, criou as performances “Regulada”, “Rubra Fluidez” e “Mãe”.

Santos pôde apresentar a performance “Rubra Fluidez” em um contexto educacional de uma organização não governamental, tendo como público um grupo de meninas adolescentes. Tal experiência, juntamente com a coleta de depoimentos nos banheiros, teve um impacto significativo no desenvolvimento da pesquisa. Em sua conclusão, a pesquisadora traz a noção de Performance Arte como caminho a ser percorrido coletivamente, que parte do corpo da performer, mas se espalha na rede de relações construída não somente durante a pesquisa, mas a cada apresentação. Assim, encontramos no trabalho de Santos, e em certa medida em todos os trabalhos reunidos neste bloco, a arte como meio de fazer falar sobre a menstruação, que se espalha e contagia.

Eixo 4: Tecnociência e produtos menstruais

No quarto eixo, o mais extenso dos eixos, foram reunidos 24 trabalhos que têm como foco central de pesquisa as relações entre menstruação e tecnociência. Nas produções, ganham destaque questões relacionadas à oferta e ao consumo de produtos para a gestão do ciclo menstrual. A maior parte das produções são fruto de pesquisas baseadas em etnografia como método central e compartilham, em larga medida, bases epistemológicas das críticas feministas, em especial aquelas alinhadas às questões decoloniais, bem como aportes teóricos advindos da antropologia da ciência e tecnologia. Como resultado, muitas produções reunidas neste eixo tensionam de modo mais explícito a divisão entre processos “naturais” da menstruação e o que seria a atribuição de valores e significados a esses processos, propondo uma coprodução entre esses dois polos. Os trabalhos foram organizados em cinco blocos, apresentados a seguir.

No primeiro bloco estão reunidos trabalhos que têm como questões de pesquisa produtos para contenção e controle do sangue menstrual, como absorventes e coletores menstruais. Em geral, as pesquisas acompanham mudanças nos padrões de publicidade e consumo de tais produtos, destacando os processos pelos quais esses ganham espaço nos mercados brasileiros. Tais mudanças nos padrões de consumo também levam a mudanças nas práticas de gestão da menstruação e do sangue menstrual, como demonstrou a dissertação “Introduzindo o primeiro produto menstrual que não absorve nada: coletores menstruais e transformações nas ordens prático-simbólicas da menstruação”, apresentada por Letícia Wons, em 2020, ao Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da UFBA.

Partindo da identificação da tardia emergência do coletor menstrual, cuja invenção remonta a 1937, a pesquisa de Wons buscou investigar as transformações nas ordens prático-simbólicas da menstruação que o uso desse produto vêm promovendo. Para tanto, foram entrevistadas usuárias do coletor menstrual em sessões de grupos focais, e o resultado foi analisado à luz de uma abordagem que levou em conta preceitos epistemológicos do feminismo perspectivista. Observou-se que a utilização do coletor menstrual demanda acuidade de percepção às características únicas dos corpos, possibilitando contato com o sangue menstrual, o que proporciona outra percepção da menstruação, tensionando o que a pesquisadora chamou de “alienação corporal” que os estigmas menstruais proporcionam.

Relacionando-se com as temáticas trabalhadas no quinto bloco, a pesquisadora demonstra como a disseminação do coletor ocorre no Brasil a partir de redes de mulheres que constroem conhecimento através da troca de suas experiências, em certo enfrentamento das dinâmicas hegemônicas de consumo e escolhas na gestão da menstruação, desafiando as autoridades médicas e midiáticas. Nessa transformação dos modos de praticar e pensar a menstruação ganham importância as redes de trocas criadas e mantidas em ambientes online, como as redes sociais Facebook e Instagram. 

Tal peso na troca online é algo que aparece em diversos trabalhos que compõem este eixo. Mais recentemente, observamos a ascensão de um produto online voltado para o ciclo menstrual, os menstruapps, ou aplicativos de monitoramento. O segundo bloco reúne produções que têm por objetivo acompanhar a entrada e aderência desses produtos, bem como os impactos da utilização desses artefatos tecnocientíficos no cotidiano de pessoas que menstruam. Apresentada em 2019 ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ por Gabriela Cabral Paletta, a dissertação “Menstruapps na era farmacopornográfica: aplicativos de monitoramento de ciclo menstrual e interseções entre corpos, máquinas e tecnopolíticas de gênero” é um trabalho pioneiro sobre o tema no Brasil.

O objetivo da pesquisa foi analisar alguns aplicativos de monitoramento do ciclo menstrual que são oferecidos gratuitamente no mercado brasileiro, a fim de investigar os modos de produção e performance de temas como “ciclo menstrual” e “menstruação” nessas plataformas. Para tanto, a pesquisadora desenvolveu uma etnografia que perpassou uma descrição detalhada desses softwares, suas categorias e funcionamento, além de uma atenção grande à questão da gestão dos dados pelas empresas explicitada nas Políticas de Privacidade de cada um dos aplicativos. A conclusão de Paletta é que os mentruapps carregam consigo a noção de que “menstruação” é algo associado a um controle social intensivo – através da medicalização, por exemplo. Além disso, a menstruação, aliada a conceitos como “reprodução” e “fertilidade”, performa certa tecnologia discursiva de gênero, reforçando a necessidade de tais intervenções de controle para a manutenção de determinadas marcas em comum entre diferentes corpos.

Ainda no espectro de produtos menstruais, o terceiro bloco reúne trabalhos que têm como tema central as relações entre menstruação e remédios hormonais. Esse tema já vem se consolidando há algum tempo no Brasil, visto que o consumo de pílulas anticoncepcionais é difundido massivamente pelo país. As pesquisas que abordam o uso de hormônios também discorrem sobre a medicalização da menopausa, assim como os usos dos hormônios a partir de críticas feministas contemporâneas. O trabalho de Daniela Tonelli Manica é uma das referências quando se trata de antropologia e menstruação como um todo, e em especial sobre o desenvolvimento, difusão e uso de hormônios contraceptivos. A tese “Contracepção, natureza e cultura: embates e sentidos na etnografia de uma trajetória”, apresentada por Manica em 2009 ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UNICAMP, compõe uma longa trajetória de pesquisas sobre esses temas, a qual teve início ainda na graduação.

A tese apresenta o resultado de uma pesquisa que investigou o que a pesquisadora chamou de “desnaturalização” da menstruação, ou seja, o argumento de que a menstruação não seria algo “natural” e, portanto, deveria ser suprimida. Tal argumentação está presente no trabalho desenvolvido pelo médico ginecologista Elsimar Coutinho, cuja trajetória foi o fio condutor percorrido por Manica. Através de narrativas autobiográficas do médico, a pesquisadora foi desdobrando outros elementos contextuais, como contraceptivos injetáveis, implantes subcutâneos, dispositivos intrauterinos, contracepção masculina, vacina contraceptiva e pílula vaginal.

Muitas das produções que compõem o levantamento realizado priorizaram dar espaço e voz às mulheres, colocando-as no centro de pesquisas sobre menstruação como forma de enfrentar todo o apagamento e silenciamento que o tema carrega. Em sua pesquisa, Manica realiza o movimento contrário, abrindo espaço para que se manifestem falas, trajetórias, embates e sentidos vivenciados e produzidos por aqueles que são responsáveis pelos desenvolvimentos tecnocientíficos que impactam a vida das mulheres – na maioria das vezes com a intenção de controle de seus corpos. Ao realizar tal movimento podemos, a partir de uma análise firmada em epistemologias feministas, não somente apontar com mais assertividade questões problemáticas nas constituições dos fazeres tecnocientíficos, mas também ensaiar esboços de pontes e alianças possíveis. 

O quarto bloco é composto por produções que enfocam investidas biomédicas sobre a menstruação. Em um futuro aprofundamento desse levantamento, este bloco certamente irá se expandir, uma vez que muitos trabalhos que tratam sobre o desenvolvimento e estabelecimento da ginecologia como ciência responsável pelo escrutínio dos corpos com útero certamente dialogam, em maior ou menor medida, com a menstruação. Seguindo com o trabalho de Daniela Tonelli Manica, o artigo “CeSaM, as células do sangue menstrual: gênero, tecnociência e terapia celular”, publicado em 2018 com as cientistas das áreas das ciências biológicas, Regina Coeli dos Santos Goldenberg e Karina Dutra Asensi, é um bom exemplo de aproximação entre ciências humanas e sociais e áreas das ciências da saúde.

O artigo é fruto da pesquisa atual da antropóloga junto às pesquisadoras do Laboratório de Cardiologia Celular e Molecular (LCCM) do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que trabalham com as chamadas CeSaM – “células do sangue menstrual”. As autoras discorrem sobre as tensões e implicações em utilizar sangue menstrual como matéria prima para pesquisa científica, nesse caso, para obtenção de células estromais mesenquimais, que são utilizadas para pesquisas sobre células-tronco. Os resultados levantados pelas autoras indicam a adequação da CeSaM para esse tipo de pesquisa, sendo células fortes e resistentes. Porém, demonstram também que o uso de sangue menstrual e suas células enfrenta uma série de machismos institucionais, que impactam, por exemplo, na capacidade de financiamento que pesquisas com CeSaM poderiam obter. 

No quinto e último bloco foram reunidos trabalhos que se ocuparam de investigar práticas de resistência ao domínio biomédico dos corpos menstruantes. São trabalhos que tematizam movimentações contemporâneas, como a preocupação com o impacto ambiental que a gestão do sangue menstrual pode ter; a busca por maior autonomia nos cuidados com o corpo através do que vem sendo chamado de “ginecologia natural” e “ginecologia autônoma”;  o fomento de redes de trocas de saberes e conhecimentos entre mulheres e pessoas que menstruam; aproximações entre mulheres urbanas com saberes ditos tradicionais etc. A dissertação “Aparatos de produção subjetivo-corporais nas práticas de percepção da fertilidade”, apresentada por Bruna Klöppel, em 2017, ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, investigou o abandono da pílula hormonal e a adoção de práticas contraceptivas por algumas mulheres. A pesquisadora, que dialoga com as teorias feministas neomaterialistas sobre ciência e tecnologia, bem como com os estudos sociais da ciência e tecnologia, realizou observações em grupos de mulheres em redes sociais, além de entrevistas semiestruturadas. 

Ao descrever práticas discursivo-materiais relacionadas às técnicas “alternativas” contraceptivas, Klöppel aponta para uma transformação no modo de se relacionar com a menstruação e o sangue menstrual. Como resultado da pesquisa, é tensionada a associação normativa de gênero entre mulher e reprodução através de estratégias de conformação e resistência. Ao seguir de perto tais estratégias, a pesquisadora também aponta para uma maior abertura dos limites entre sexo e gênero, natureza e cultura, e demais separações rígidas entre domínios biológicos e culturais, as quais normalmente se associam ao ciclo menstrual, gravidez e contracepção. 

Ainda neste bloco, gostaria de destacar a tese “Portal Vermelho: uma etnografia sobre gênero, corpo, sangue, emoções e experiência”, de Janaina de Araujo Morais, apresentada em 2021 ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF. Perpassando campos como arte, educação, antropologia, biomedicina, saberes tradicionais e práticas de resistência, o trabalho de Morais é um ótimo exemplo dos limites das classificações – eixos e blocos – experimentadas nesta primeira aproximação com o levantamento de produções. Funcionando como uma espécie de fio capaz de costurar muitos dos temas aqui separados em caixas, a tese da antropóloga é contaminada por sua própria experiência como terapeuta menstrual, interessada tanto pelos saberes científicos quanto pelos saberes tradicionais e mágicos que perpassam o sangue menstrual. 

O foco da pesquisa está em compreender de que forma o tabu da menstruação é forjado em nossa sociedade e acompanhado pela medicalização, bem como analisar os processos de resistência à medicalização e ressignificação da menstruação e do sangue menstrual. Tendo como escolha teórico-metodológica a autoetnografia, a pesquisadora descreve suas experiências durante cursos, vivências, oficinas, encontros, rodas de conversa etc. A emoção ganha um espaço central na tese, bem como os afetos que perpassam não somente o corpo-outro, o corpo pesquisado, mas também o corpo de quem pesquisa, uma vez que já não é possível estabelecer um limite claro entre os polos sujeito-objeto. Da mesma forma, pesquisa e política também se contaminam e se misturam, sendo a tese uma manifestação do ativismo menstrual da pesquisadora, bem como um documento que organiza e sistematiza conhecimentos praticados por ela enquanto bruxa, em sua busca de se relacionar de um modo transformador com o próprio corpo e, consequentemente, com a menstruação.

Eixo 5: Conhecimentos sobre cuidados com o corpo

O quinto eixo conta com 16 trabalhos, entre artigos, trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses, e reúne trabalhos que abordam a menstruação a partir dos conhecimentos sobre cuidados com o corpo, no sentido de como esse se dá em diferentes culturas, sendo focalizados os resguardos menstruais. Os trabalhos reunidos aqui possuem, em sua maioria, forte influência do trabalho de Mary Douglas (1976) e das noções de “pureza e perigo” que acompanhariam o sangue menstrual em seu contato com atividades do dia a dia, em especial atividades que envolvem algum tipo de sacralidade. Nessa primeira aproximação, é possível verificar tensões ao realizar uma leitura comparativa das produções, principalmente no que diz respeito à noção de poder relacionada à interdição menstrual, que, por vezes, aparece como poder masculino dominador da liderança política feminina, e, por outras, aparece como poder feminino capaz de desbalancear relações de gênero, por isso mesmo contido durante a menstruação. As produções aqui reunidas são, em sua maioria, fruto de pesquisas de cunho etnológico e foram reunidas em três blocos, apresentados a seguir. 

No primeiro bloco estão trabalhos cujo campo foi desenvolvido junto a grupos praticantes de religiões afro-brasileiras, como candomblé, mina nagô e tambor de mina. Em todos os trabalhos a menstruação é muito importante, ainda que os temas centrais sejam, em sua maioria, o sangue e a presença feminina nessas religiões. Apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE, em 2009, a dissertação “Kosi ejé kosi orixá: simbolismo e representações do sangue no candomblé”, de Ligia Barros Gama, possui muita afinidade teórica com os trabalhos reunidos no Eixo 2: Análise simbólica/interpretativa. Esse fato demonstra a multiplicidade de significados culturais atribuídos ao sangue, entendido como substância que compõe certa unidade biológica compartilhada entre os seres humanos. A trajetória da pesquisadora é muito interessante: graduada em biomedicina, migrou para a antropologia como parte de uma busca por mais recursos para lidar com a realidade cotidiana de trabalho em laboratórios de análise clínica. 

O sangue, companheiro de trabalho de Gama, também estava fortemente presente em outro âmbito de sua vida, o religioso. Candomblecista, a pesquisadora desenvolveu uma pesquisa que, apesar de direcionar as atenções para o sangue no Candomblé, também levou em conta o modo como a ciência e a medicina simbolizam e imaginam o fluido. Gama percorreu a circulação do sangue em diferentes contextos dessa religião de matriz africana.  O uso do sangue em rituais provoca uma série de conflitos, estigmas e discriminações, porém, é vital para a própria religião. É através do sangue, portador do axé, que o povo de santo faz a manutenção da energia vital individual e coletiva, incluindo aí os próprios orixás.

Em sua etnografia em terreiro, Gama também observou os interditos rituais para mulheres menstruadas, que existem porque o sangue menstrual é um meio de desgaste de axé, considerado uma impureza. Porém, Gama explicita que tal noção de impureza é diferente daquela judaico-cristã, que atrela esse estado ao pecado. A experiência do sagrado e as conexões que surgem daí demandam um corpo forte, no qual o axé é mantido e intensificado, o que não acontece durante a menstruação, momento de “corpo aberto”. Por isso, existe uma série de interditos para a circulação e trabalho de mulheres menstruadas:

(…) é vetada a participação feminina no preparo dos alimentos ofertados aos santos, sua presença no peji, no xirê, sendo igualmente impedida sua permanência no salão em dias de obrigação e toques, entre outros (…) o colar de contas também pertence à dimensão sagrada que exige, em seu contato, a pureza do adepto. (Gama, 2009, p. 81)

Ancorado em diversos mitos, o sangue menstrual também é associado à fertilidade, bem como a um potencial regulador do tempo de oferendas devido à sua ciclicidade. Gama também afirma que, em Recife, local de sua pesquisa, o sacrifício ritual de animais é realizado por sacerdotes homens ou por mulheres mais velhas, que já não menstruam mais. Ou seja, os interditos menstruais possuem forte ligação com a preparação da comida, algo que é vital para a sobrevivência humana – e também para a sobrevivência ritualística do Candomblé. O sangue menstrual está conectado, portanto, à vida, à nutrição, ao poder, à troca, à saúde, à impureza, à fertilidade, à fonte e ao desgaste de axé, promovendo encontros de domínios que na tradição judaico-cristã permanecem intocados. 

O segundo bloco reúne trabalhos nos quais a menstruação não é exatamente o centro dos questionamentos, porém, ocupa lugar de destaque e, em muitos casos, perpassa transversalmente as temáticas centrais. São trabalhos que versam sobre questões que tocam o dia a dia de mulheres indígenas, como xamanismo, corpo, cuidados com a saúde etc. Neste bloco, também estão trabalhos que abordam práticas de resguardo entre povos ameríndios, sendo o resguardo menstrual um dentre vários resguardos praticados. Alguns dos trabalhos têm autoria de pesquisadoras indígenas, que buscam descrever e investigar as práticas corporais dos seus próprios povos.

Neste bloco, está o artigo “A força dos pensamentos, o fedor do sangue: hematologia e gênero na Amazônia”, publicado em 2006 por Luisa Elvira Belaunde, uma das referências pioneiras em discorrer sobre gênero entre povos ameríndios. Belaunde baliza sua análise em dados etnográficos sobre o sangue, seus conhecimentos e suas implicações cosmológicas na vida das pessoas, em especial o resguardo ritual. A partir das teorias ameríndias sobre menstruação, a antropóloga elabora a complexa relação entre a materialidade do sangue e as imagens e relações cosmológicas que ele engendra. O corpo – e o sangue – mais do que uma realidade biológica estável, modela e é modelado por experiências e conhecimentos, transformando-se continuamente. A diferenciação de gênero é mais uma dentre tantas configurações possíveis de corpos e depende diretamente dos conhecimentos e práticas com os quais a pessoa teve contato ao longo da vida. Esses conhecimentos são transportados para todas as partes do corpo pelo sangue, que é a materialização do pensamento em si. 

A manipulação do sangue ocupa um lugar central na saúde amazônica, sendo o sangramento uma prerrogativa feminina, alicerçada em mitos de origem dos humanos. Porém, os homens também podem compartilhar com as mulheres a condição de sangramento quando estão em estado de homicida, ou seja, quando promovem o derramamento de sangue de um inimigo. Além de dietas estritas, os resguardos menstruais envolvem muitas vezes o afastamento de tarefas cotidianas, como cozinhar e cuidar do roçado. Belaunde também aponta para a relação entre o sangrar e a fertilidade: o sangue derramado é compreendido como veículo que abre uma comunicação entre o tempo cotidiano e outros espaços-tempos cosmológicos e, por isso, expõe o o coletivo de pessoas ao perigo da multiplicidade transformacional, sendo assim uma questão importante para o xamanismo.

Parte dos trabalhos reunidos neste bloco investigam questões ligadas às mulheres indígenas. Entre essas produções, gostaria de destacar a dissertação de Creuza Prumkwyj Krahô, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais da UNB, em 2017, intitulada “Wato ne hômpu ne kãmpa: Convivo, vejo e ouço a vida Mehi (Mãkrarè)”. Ao abordar os cuidados com o corpo, ou resguardos, a pesquisadora privilegia a própria experiência enquanto mulher indígena para, a partir dessa perspectiva, narrar as técnicas e conhecimentos que envolvem a pintura corporal, o uso do Crow (tora de buriti) e as músicas Mehi. Tais cuidados ocorrem ao longo da vida das pessoas, podendo ser individuais, como no caso de processos de adoecimento ou rituais de iniciação (como a primeira menstruação), ou coletivos, como rituais relacionados ao ciclo anual, que vincula a estação de chuva e da seca ao sistema agrícola Krahô, por meio do plantio e colheita do milho e da batata-doce. 

De acordo com Prumkwyj Krahô, o resguardo menstrual é o primeiro dos resguardos aprendidos mitologicamente pelo povo Mehi. A menstruação e a gestação caminham juntas e o cuidado com o sangue que flui nas duas situações deve ser grande. Nos dois casos, a pesquisadora frisa a importância das relações familiares para que os resguardos ocorram de forma tranquila, descrevendo as tarefas do marido/pai, responsável por buscar e preparar remédios à base de ervas, e as tarefas da mãe da mulher e da mãe do marido, responsáveis pela tarefa de preparar a alimentação da mulher menstruada ou no puerpério.

No terceiro e último bloco foram reunidos trabalhos em etnologia ameríndia que tratam diretamente sobre menstruação e sangue menstrual. Assim como no bloco anterior, temas que se afiliam ao da menstruação são o xamanismo, resguardos, concepção, gestação e cuidados com a saúde, em especial após a primeira menstruação.  Publicado em 2019 por Ana Manoela Primo dos Santos Soares, o artigo “Sangue menstrual na sociedade Karipuna do Amapá, Brasil” também é uma produção realizada por uma mulher indígena com formação na área de antropologia. A pesquisadora atua em pesquisas colaborativas com as mulheres de seu povo. 

No artigo, Soares discorre sobre como o djispoze (menstruação) molda as tx ifam Karipuna (meninas) em jonfi e fam (moças e mulheres). O sangue menstrual demarca tempo e limites dos corpos, além de demandar uma série de cuidados, dado o seu perigo:

As jonfi e fam menstruadas não podem ir a lugares como rios, lagos, igarapés, olhos d’água, matas, cavernas e roças, pois corre-se o risco de a jonfi ou a fam ser enfeitiçada por algum karuãna ou bicho que habite o local. Quem menstrua expele uma substância perigosa e deve praticar reclusões. O sangue menstrual, quando fora do corpo, é atrativo em certos contextos e, em outros, é repulsivo para os encantados. (Soares, 2019, p. 420)

O sangue menstrual atua, portanto, como um veículo que desestabiliza o mundo cotidiano, criando conexões com outros mundos e vulnerabilidades à feitiçaria. A menstruação está diretamente ligada à concepção, e uma das principais consequências de um resguardo quebrado é uma gravidez provocada por um encantado e, portanto, uma gravidez enfeitiçada. A criança poderá nascer fraca e morrer em decorrência da reclamação de um encantado pertencimento familiar. 

Ao final do artigo, a pesquisadora retoma memórias familiares e aponta para o fato de que muitas das palavras e histórias que ouviu durante a sua vida vinda de mulheres mais velhas e que envolviam o coletivo de mulheres eram relacionadas à menstruação e ao sangue menstrual. A presença constante e forte do tema, passado de geração em geração, revela uma importância profunda na sociabilidade Karipuna, que inclui também as relações entre humanos e não humanos, ou seja, relações de gênero são indissociáveis das relações com os karuãnas. A menstruação, na descrição de Soares, ganha uma complexidade instigante, reposicionando o sangue menstrual como algo necessário para a constituição de cada pessoa – e encantado – Karipuna.

Ponto e vírgula: daqui pra frente

Construir esse levantamento do estado da arte das produções sobre menstruação em antropologia e correlatos no Brasil foi, no contexto da produção da tese, um esforço para aterrar o problema que escolhi levar adiante. Esse movimento de construção de bases, ou de um chão, para que sigamos produzindo certamente está em pleno vigor, e a paisagem esboçada aqui pode se expandir e se adensar ainda mais. Dadas as dificuldades de operacionalizar a busca por trabalhos, acredito que os resultados podem ficar mais ricos se algumas palavras que tangenciam o termo “menstruação” forem adicionadas às buscas sistemáticas, como “concepção/anticoncepção/anticoncepcionais”, “menopausa/menarca/amenorreia”, “útero” etc. Outros materiais que não foram considerados certamente contribuíram com o levantamento, como capítulos de livros e livros. 

Além disso, existem materiais recentes e muito interessantes que não foram considerados nesse levantamento e que foram apresentados no Seminário Temático “Sangue, técnica e multiplicidade: vazantes de menstruações diversas”, parte integrante da VIII ReACT, ocorrida em novembro de 2021. O seminário foi coordenado por Daniela Tonelli Manica e Luisa Elvira Belaunde, e foi fruto da vontade e das discussões ocorridas na Coletiva Vazantes, uma coletiva autônoma de pesquisadoras da menstruação da qual faço parte. Em 2023, também foi organizado, por Anna Paula Vencato e Larissa Pelúcio, o grupo de trabalho  “Antropologia da menstruação – feminismos, corporalidades e tecnologias”, fazendo parte da XIV RAM. Além disso, no final do 2023 foi lançado o dossiê  “Corpo e Menstruação na Amazônia Indígena”, publicado no fim de 2023 na Revista Estudos Feministas, organizado por Melissa Santana de Oliveira, Chloe Nahum-Claudel, e Johanna Gonçalves Martin, contando com oito artigos. Esse movimento de exteriorização e publicação de trabalhos que dialogam com a antropologia e têm a menstruação como tema central reforça a tendência observada de aumento do interesse pelo tema. A dimensão do trabalho de sistematização e estado da arte é enorme e virtualmente infinita. Espero, com esse levantamento, contribuir para que mais trabalhos nesse sentido sejam desenvolvidos.

Antes de concluir esta seção, gostaria de compartilhar uma ponderação que vem sendo desenvolvida de modo coletivo junto a algumas colegas que compartilham comigo o tema da menstruação a partir de um enfoque socioantropológico. Através de nossa inserção no campo e atuação na construção de redes entre pesquisadoras, mesmo que informais, podemos observar que, ao mesmo tempo que o interesse pela menstruação vem aumentando, também vem crescendo uma abordagem cujo enfoque tende a uma certa tecnofilia, ou seja, uma sobrevalorização dos produtos como caminho para alcançar maior dignidade menstrual. Algumas pesquisas que estão sendo produzidas no momento em que escrevo trabalham essa questão, por exemplo, investigando o interesse de megacorporações transnacionais na menstruação, como a Unilever e a Johnson & Johnson, e a criação de alianças dessas empresas com setores governamentais e organizações do terceiro setor. Um exemplo é o trabalho de Michelle Perez dos Santos e Daniela Manica (2023), apresentado no supracitado grupo de trabalho da RAM, que apresenta uma análise qualitativa dos textos e proposições de leis estaduais voltadas para a menstruação. As pesquisadoras concluem que essas leis tendem a:

  1. Essencializar a menstruação como uma experiência quase que exclusivamente “feminina”, de “mulheres”, excluindo pessoas trans e não binárias, pessoas negras, pessoas com deficiência e suas especificidades do processo;

  2. Focar principalmente no consumo de insumos descartáveis, desconsiderando as limitações infraestruturais das populações em situação de pobreza, como o acesso à água, bem como a importância de ações educativas mais ecológicas;

  3. Minimizar ou não priorizar a dimensão pedagógica e educativa das ações pela dignidade menstrual, que envolvem não somente acesso a absorventes, mas também uma discussão sobre a menstruação sem silenciamentos e constrangimentos. 

(Santos e Manica, 2023, p. 18)

Mais de uma vez pudemos presenciar encontros sobre o tema da menstruação em que o viés acadêmico e de pesquisa era uma primeira camada sob a qual se encobria uma dinâmica de contatos comerciais. Nesse momento de alargamento do interesse pela menstruação a partir de pontos de vista que vão além do biomédico, é importante que nós, pesquisadoras feministas, estejamos atentas. Espero que este breve panorama das intersecções entre antropologia e menstruação como tema de pesquisa seja um ponto e vírgula, um ponto de parada e respiro para pensarmos sobre o que virá.

 O que desejo é a fermentação de um campo que não abra mão de um posicionamento crítico diante dos avanços capitalistas e colonialistas que, sob um véu de igualdade, acabam por mais uma vez “normalizar” o que é e o que pode ser a experiência de menstruar – tendo sempre como horizonte o consumo. Em um cenário de fechamento de diálogos e ascensão política de fundamentalismos no qual vivemos, nosso desafio será equalizar essa postura crítica – nem tecnofílica, nem tecnofóbica – com a defesa por direitos, como o acesso a absorventes, ao saneamento básico, à educação pública e gratuita, ou seja, à defesa do mínimo.

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