Como você acha que o futuro nos vê? Eles não vão pensar em nós. Eu acho que eles vão nos odiar. Não temos ideia, agora, de quem ou o quê poderão ser os habitantes do nosso futuro. Nesse sentido, não temos futuro. Não no sentido do futuro que os nossos avós tinham, ou achavam que tinham. Futuros culturais completamente imaginários eram o luxo de outra época, na qual o “agora” tinha uma duração maior. Para nós, claro, as coisas podem mudar de modo tão abrupto, tão violento, tão profundo, que futuros como o dos nossos avós possuem um “agora” insuficiente para se manter de pé. Não temos futuro porque o nosso presente é volátil demais. Temos apenas gerenciamento de riscos. O desdobramento dos cenários de um momento determinado. Reconhecimento de padrões. Então nós temos um passado? A História é uma narrativa de boas suspeitas sobre o que aconteceu e quando. Quem fez o quê a quem. Como quê. Quem venceu. Quem perdeu. Quem se adaptou. Quem se extinguiu. O futuro está lá, olhando para nós. Tentando entender a ficção em que teremos nos tornado. E de onde eles estão, o passado atrás de nós não parecerá nem um pouco com o passado que imaginamos atrás de nós agora. Só sei que a única constante na história é a mudança: o passado muda. O passado também é mutável, tão mutável quanto o futuro, mas ele não deveria ser escavado, saqueado, jogado fora. (adaptado de Gibson, 2015, p. 74)
Vivemos um momento em que a catástrofe não somente se avizinha, mas se faz presente em nosso cotidiano. O trecho acima, do romance Reconhecimento de Padrões, escrito por William Gibson (2015), condensa, de forma brilhante – como textos ficcionais são capazes de fazer –, a preocupação com o futuro (e o passado) que muitas pessoas teóricas vêm apontando e trabalhando sobre, sejam pessoas vinculadas às críticas da ciência e tecnologia, sejam aquelas que produzem a partir de seus conhecimentos indígenas/originários.
A expropriação capitalista fez com que a natureza e seus ciclos já não pudessem fornecer pistas exatas sobre o que está por vir. Inebriados pela ansiedade, sentimos nosso “agora” cada vez mais curto.
Nós, que estamos na barriga do monstro da ciência e tecnologia, sentimos na pele a responsabilidade pela fabricação dessa malha de tempo – ou, pelo menos, deveríamos sentir. É através das metodologias e dos métodos que as tecnociências são praticadas e se tornam, ao mesmo tempo, algo que age no tempo presente e projeta os tempos passados e futuros. Por isso, as práticas científicas encapsuladas nas metodologias e métodos respondem a contingências histórico-políticas. A experimentação metodológica, ou as metodologias experimentais, podem ser uma forma de, ao mesmo tempo, seguir com e provocar a mudança (do passado, do presente, do futuro) sem, com isso, promover saques.
Em diálogo com Stengers, o antropólogo Renato Sztutman recorda as fundações experimentais e especulativas de áreas como a Química e a Psicanálise, as quais acabaram esquecidas no processo de se afastarem da magia para se tornarem científicas. O “caráter épico” da busca pela Verdade fez com que a aventura e a abertura ao indeterminado perdessem espaço para métodos que buscam a “conjuração das más razões” (Sztutman, 2018, p. 345). Mesmo quando o experimento é a base da produção de conhecimento, podemos observar tal dinâmica apontada por Sztutman na orientação ao desenvolvimento de produtos tecnocientíficos que tais produções possuem. Também podemos apontar o fato de que o que circula como produção de conhecimento é somente o que “deu certo” nos experimentos e, desse modo, todo processo experimental é limpo, purificado (Latour, 1994) e, muitas vezes, falseado.
Como prática no mundo, a pesquisa científica é uma atividade social e política. Sztutman afirma que Stengers aposta em retomar a abertura ao indeterminado dentro da prática tecnocientífica. Nesse sentido, práticas experimentais que não sejam baseadas na busca pela Verdade podem ser um caminho para tal abertura. Reconhecendo que a tecnociência cumpre um papel determinante nos “projetos de desenvolvimento” movidos pelas “forças de extração (do comum, do trabalho, da vida, da terra, dos bens coletivos) operadas pelo agronegócio, agropecuária, pela mineração” (Moraes; Parra, 2021, p. 3), as práticas experimentais podem se tornar uma “ação de invenção de novas composições de mundos, simultaneamente ontológica, epistêmica e política” (ibid.).
Alana Moraes e Henrique Parra, pessoas que pesquisam na interseção entre as áreas da antropologia e dos estudos sociais da ciência e tecnologia, apontam o caráter de “contágio” de práticas laboratoriais-experimentais. Estas acionam relações que não cabem dentro de imagens de controle e de contenção, como em uma situação de contágio que “nos obriga a pensar pelos regimes de afecções entre criaturas e nos faz considerar elementos que não são imediatamente visíveis” (Moraes e Parra, 2021, p. 9). Em situações de contágio, devemos reconhecer a vulnerabilidade, heterogeneidade e inconstância dos corpos que participam de uma produção de conhecimento na qual “não existe um privilégio epistemológico que garanta uma visão total do acontecimento”, mas sim “uma teia delicada de interdependência” (ibid.). De fato, toda produção científica carrega consigo essa potência epidêmica/contagiante.
Uma produção de conhecimento que seja experimental é uma “ciência do contato e do risco, feita por corpos sensores implicados e afetados pela iminência febril” (Moraes e Parra, 2021, p. 10). O ambiente no qual a experiência pode acontecer não está sob o “regime da eficácia”, ou da produtividade, uma vez que é necessariamente instável. Aqui, o produto cede lugar ao protótipo como objetivo final da pesquisa. No design de produto, o ato de “prototipar” se refere a todas as etapas anteriores de teste e aperfeiçoamento que acontecem antes de existir um produto industrial. Uma ciência que se contenta com o protótipo é uma ciência do rascunho, da modelagem, da confrontação, da abertura e da inconclusão. Assim, experiências-protótipos são, ao mesmo tempo, “um modo de conhecer e um modo de intervir politicamente no mundo”:
Como forma de conhecer, significa levar a sério o fato de que todo processo de produção de conhecimento é também um ato de intervenção no mundo, por isso, deve incorporar na sua análise os efeitos e as consequências do que ela está produzindo. Dessa forma, uma política do cuidado acompanha o processo de investigação e prototipagem. A noção de experiência ganha força: conheço algo que me acontece; sou partícipe e implicado com este processo de conhecer. Prototipar, no sentido político aqui atribuído, significa a decisão de substituir a adesão a um projeto abstrato de sociedade futura pela decisão de experimentar construir no aqui‑agora, sempre parcialmente, uma diferença que se deseja. (Parra, 2019, p. 113)
Encontro ressonância entre essa proposta metodológica experimental-laboratorial baseada em protótipos e a hipótese que move esta tese, de insistir em produzir conhecimento acadêmico e, para isso, escolher como estratégia não ferir os sentimentos estabelecidos, a priori. Dentro desta hipótese está implícito o desejo por abertura de espaços de prática da diferença no presente, no aqui-agora. Os experimentos que conduzi produziram efeitos e consequências. Para cuidar disso, foi necessário confeccionar estratégias e ferramentas metodológicas que compõem esta parte.