Para encerrar esta seção, gostaria de compartilhar algumas pontuações zapatistas sobre modos de produzir ciência. Gostaria, porque não sei se isso é de fato possível. É uma tarefa ingrata falar sobre os textos e discursos zapatistas, já que estes falam de forma tão linda por si mesmos. Mas acho que vale a pena tentar, nem que seja para convidar a todas as pessoas que vão entrar em contato com esta tese para que leiam por elas mesmas. Convite feito. 

A ciência que os zapatistas praticam, e que eles nos convidam a experimentar, é uma ciência pela vida e contra os projetos de morte da Hidra capitalista. Esta ciência, a ciência pela vida, é capaz de melhorar nossa realidade. Por exemplo, melhorar de fato as técnicas de cultivo agrícola sem criar produtos transgênicos-tóxicos de venda casada. Mas, para isso, o modo de praticar ciência deve ser baseado em resistência e rebeldia. Os modos pelos quais as pessoas vivem devem ser criados pelo próprio povo e a ciência deve responder a isso, e não o contrário, pois se é assim o que acontece é apenas a expropriação das riquezas do povo.

Ao falarem para cientistas, os zapatistas os provocam a se aproximar metodologicamente das artes, pois é através delas que conseguimos cavar o que há de mais profundo no ser, assim, encontrar alguma possibilidade humana entre “engrenagens, parafusos e resorts recheados de mal humor” (Galeano, 2016). O que as artes produzem é algo subversivo e inquietante. Elas mostram a possibilidade de outro mundo. Aliando a pesquisa científica a essa potência da arte, as ciências ganham maior capacidade de reorientar o desespero em que vivemos e fazer com que deixemos de esperar. Para os zapatistas, a política [institucional], a economia e a religião dividem, parcelam, partem. As ciências e as artes unem, “hermanan”, transformam as fronteiras em “pontos geográficos ridículos” (ibid.). Assim como a “ciência do contato” proposta por Moraes e Parra, a ciência zapatista poderia ser descrita como uma “ciência da aproximação”, cujo objetivo é imaginar, construir e praticar experiências capazes de demonstrar para nós mesmos que “sí se puede” (Galeano; Moisés, 2016).

Gato-Perro, ser quimérico meio gato meio cachorro (a depender de quem, de onde e quando se observa) que povoa a cosmologia zapatista, narra uma viagem interestelar que convoca três grupos de pessoas a se encontrarem para produzir essa ciência pela vida (Galeano, [[El Gato-Perro, 2016). A história foi encontrada por ele junto aos papéis e desenhos do finado SubMarcos e, pelo que Gato-Perro entendeu, se tratava de um rascunho para um roteiro de um filme de ficção científica. O título do filme é “Para onde olhar?”. A história se passa no planeta Terra e, coincidentemente, ou não, no futuro ano de 2024, ano que escrevo estas palavras. As viagens no espaço tornaram-se novos destinos turísticos, e uma nave espacial que é uma réplica da Lua dá voltas em torno da terra. A nave possui uma janela enorme que, durante todo o tempo da viagem, permite que os passageiros admirem a Terra. No lado contrário há uma pequena claraboia, do tamanho de uma janela como as que temos em casa, onde é possível observar todo o resto da galáxia. Quando entram na nave os turistas, de todas as cores e nacionalidades, eles ficam espremidos, colados à janela enorme, ansiosos por olhar seu planeta de origem. Ficam ali, tirando “selfies” e mandando instantaneamente para seus parentes e amigos as imagens do mundo, que é “azul como una naranja”. 

Mas, nessa nave, havia quatro pessoas que estavam com os olhos vidrados na pequena claraboia. Sem a mediação das câmeras, essas pessoas estavam extasiadas olhando  a colagem heterogênea de corpos celestes: “el serpenteante trazo de luz polvosa de la Vía Láctea, el rutilante destello de estrellas que tal vez ya no existan, la danza frenética de astros y planetas”:

Una de las personas es artista; no está inmóvil, en su cerebro imagina notas y ritmos, líneas y colores, movimientos, secuencias, palabras, representaciones inertes o móviles; sus manos y dedos se mueven involuntariamente, sus labios balbucean palabras y sonidos incomprensibles, cierra y abre los ojos continuamente.  Las artes miran lo que miran y miran lo que puede llegar a ser mirado.

Otra de las personas es científica; nada de su cuerpo se mueve, mira fijamente no las luces y colores cercanos, sino las más lejanas; en su cerebro imagina galaxias impensadas, mundos inertes y vivos, estrellas naciendo, hoyos negros insaciables, naves interplanetarias sin banderas.  Las ciencias miran lo que miran y miran lo que puede llegar a ser mirado.

La tercera de las personas es indígena, de estatura menor, de tez oscura y rasgos ancestrales, mira y toca la ventana.  Su mente y cuerpo cargan sobre el sólido material transparente.  En su cerebro imagina el camino y el paso, la velocidad y el ritmo; imagina un destino en continua mutación.  Los pueblos originarios miran lo que miran y miran la vida que puede llegar a ser creada para ser mirada.

La cuarta de las personas es zapatista, de complexión y tez cambiante, mira a través y toca delicadamente con su mano el cristal, saca su cuaderno de apuntes y empieza a escribir frenéticamente. En su cerebro empieza a hacer cuentas, listas de tareas, trabajos a emprender, traza planos, sueña. El zapatismo mira lo que mira y mira el mundo que será necesario construir para que las artes, las ciencias y los pueblos originarios puedan realizar sus miradas. (Galeano, [[El Gato-Perro, 2016)

Depois da viagem, esses quatro passageiros não param no “duty free”: a pessoa artista vai ao seu estúdio para que o que viu seja sentido por outras pessoas; a pessoa cientista convoca imediatamente outras pessoas cientistas porque existem teorias e fórmulas para serem propostas, demonstradas, aplicadas; a pessoa indígena se reúne com seus semelhantes e lhes conta o que viu para que coletivamente aquele olhar possa definir o caminho, o passo, as companhias, o ritmo, a velocidade e o destino que seguirão; a pessoa zapatista retorna para a assembleia do povo, explica e detalha o que é necessário fazer para que a artista, a cientista e a indígena possam viajar. Mas a assembleia não gosta da história contada e pede para modificar o roteiro, porque ali estão faltando as pessoas trabalhadoras do campo e da cidade. Propõem, então, que se faça chegar uma carta ao finado SupMarcos para que o roteiro seja alterado considerando essas pessoas, e também agregando o Gato-Perro porque ele à essa altura já tinha comido os cabos de internet e não dava sossego caçando o mouse do computador, e também agregando a Sexta, pois sem ela a história não fica verídica. 

Com tudo encaminhando, todos os trabalhos divididos e votado o acordo geral, uma menina pede a palavra. Era Defesa Zapatista, outra pequena habitante da cosmologia zapatista, propondo que, além das adições já exigidas, se levasse também para dentro da nave uma bola e uma porção de pozol. Ela explica: “a bola é porque, se eles não vão poder jogar, então nem vale a pena ir para lugar nenhum. E a porção de pozol serve para pegar força e não desmaiar no caminho. E também para que lá, lá longe, onde estão os outros mundos, eles não se esqueçam de onde vieram”. Defesa Zapatista é ovacionada pela assembleia, que prontamente acolhe sua proposta. SubMoy está, por fim, encerrando a assembleia quando a menina pede de novo a palavra. Em uma das mãos ela tem uma bola de futebol e, na outra, um bicho que se parece com um cachorro ou um gato. E fala: “só queria falar para vocês que a gente ainda não completou o time, mas não se preocupem, já vamos ser mais, talvez demore um pouco, mas já já seremos mais”. 

-*-

 É  na companhia de Defesa Zapatista e Gato-Perro que abrimos nossa caixa de ferramentas. Eles nos ajudam a saber para onde olhar. E é na imensidão escura e profunda do universo aberto que nos encontramos para sonhar e produzir uma ciência resistente e rebelde, pela vida e contra os projetos de morte. E que as palavras de Defesa Zapatista nos guiem ao longo da viagem, relembrando a importância metodológica de praticar uma ciência que nos traga alegria, força, memória e esperança de que um dia seremos mais.

PARTE 2 _ caixa de ferramentas metodológicas