There has, for a long time, been a name for something that manages to produce a coincidence between enslavement, the putting into service, and subjection, the production of those who do freely what they are meant to do. It is something whose frightening power and the need to cultivate appropriate means of protection against is known by the most diverse of peoples, except us moderns. Its name is sorcery. (Stengers; Pignarre, 2011, p. 35)
Ao nomear o sistema capitalista como um sistema feiticeiro, Pignarre e Stengers realizam um movimento que translada as categorias através das quais pensamos e lidamos com a realidade material em que vivemos. Os autores se afastam de linguagens e práticas associadas à Institucionalidade (como o Estado, o Mercado etc.), e se aproximam de linguagens e práticas não modernas.
O capitalismo é uma força, uma entidade, uma besta, um monstro, e nós estamos dentro de sua barriga. Para os herdeiros de Marx, como os autores clamam ser, esse translado tem uma primeira implicação ao mesmo tempo perturbadora e potente: não é possível acabar com uma entidade de uma vez por todas em todos os lugares. Temos, sim, que aprender a lidar com ela, diminuir seu poder de influência, nos proteger de seus ataques e, quem sabe, em alguns lugares desse planeta, enfraquecer a besta a ponto de sermos capazes de matá-la e enterrá-la.
Não é estranho que herdeiros de Marx se movam em direção a formas não modernas de pensar e agir, já que podemos encontrar sementes de tal ímpeto nas imagens acionadas por Marx. Um dos conceitos mais importantes e estruturantes da teoria marxista é o de fetiche da mercadoria. Para Marx, a existência material da mercadoria não é uma coisa nada óbvia ou trivial, mas um fenômeno muito intricado, pleno de “sutilezas metafísicas e melindres teológicos” (Marx, 2015, p. 205):
Quando é valor de uso, nela não há nada de misterioso, quer eu a considere do ponto de vista de que satisfaz necessidades humanas por meio de suas propriedades, quer do ponto de vista de que ela só recebe essas propriedades como produto do trabalho humano. É evidente que o homem, por meio de sua atividade, altera as formas das matérias naturais de um modo que lhe é útil. Por exemplo, a forma da madeira é alterada quando dela se faz uma mesa. No entanto, a mesa continua sendo madeira, uma coisa sensível e banal. Mas tão logo aparece como mercadoria, ela se transforma numa coisa sensível-suprassensível. Ela não só se mantém com os pés no chão, mas põe-se de cabeça para baixo diante de todas as outras mercadorias, e em sua cabeça de madeira nascem minhocas que nos assombram muito mais do que se ela começasse a dançar por vontade própria. (Marx, 2015, p. 205)
Fetiche é uma palavra de origem francesa, que deriva da palavra “feitiço” em português. Em sua proposta de capitalismo como sistema de feitiçaria, Stengers e Pignarre (2011) levaram a sério as pistas deixadas na descrição de mercadoria supracitada. O assombro que as misteriosas mercadorias nos causam se deve, segundo Marx, ao fato de elas refletirem a nós mesmos os “caracteres sociais” de nosso trabalho como “caracteres objetivos dos próprios produtos do trabalho”, ou seja, “como propriedades sociais que são naturais a essas coisas e, por isso, reflete também a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social entre os objetos, existente à margem dos produtores” (Marx, 2013, p. 2017). A mercadoria é fruto de trabalho e, por isso, é uma relação social. O feitiço operado pelo capitalismo é fazer a mercadoria aparecer fantasmagoricamente como uma relação entre coisas: “os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens” (ibid.).
Ao mesmo tempo em que encobre o trabalho humano necessário para a produção de mercadorias, a economia burguesa aciona formas de “pensamento socialmente válidas e, portanto, dotadas de objetividade” (ibid., p. 211) para afastar a nuvem de misticismo, de mágica e de assombração que acompanham os produtos do trabalho gerados na base da produção de mercadorias. Para nós, “povo da mercadoria” (Kopenawa e Albert, 2015), saber de onde vem, quem fabricou ou por quais caminhos circularam o que compramos é uma preocupação que, quando emerge, afastamos rapidamente, convencendo-nos com tranquilidade que esse exercício de pensamento é simplesmente impossível. É importante ressaltar que esse modo de lidar com a materialidade da realidade é muito diferente em outros povos, por exemplo, para muitos povos ameríndios, os produtos do trabalho são pensados como relações sociais, ou seja, o trabalho colocado ali – humano e não humano – não é misteriosamente obliterado (Lagrou, 2013).
Por ser capaz de operar uma feitiçaria tão abrangente e presente no dia a dia das pessoas, não é de se estranhar que alguns coletivos contra-coloniais, também herdeiros de Marx, lidem com o capitalismo como entidade. Para os Rastafari, comunidade religiosa maroon organizada desde 1930 nas florestas montanhosas da Jamaica, o sistema da Babilônia é um vampiro. Na leitura “marxista, libertária e pan-africanista” (Bona, 2020, p. 20) que o rastafarianismo faz da Bíblia, a cidade da Babilônia é refundada em todo e qualquer sistema de governo onde haja predação, exploração e alienação. O escravismo colonial constituiu a Babilônia, assim como o capitalismo e o Estado contemporâneos também a constituem hoje. A educação praticada nas instituições capitalistas serve, portanto, para alimentar o vampiro:
We refuse to be / What you wanted us to be / We are what we are / That’s the way it’s going to be, if you don’t know / You can’t educate I / For no equal opportunity (talkin’ ‘bout my freedom) / Talkin’ ‘bout my freedom / People freedom and liberty! / Yeah, we’ve been trodding on the winepress much too long / Rebel, rebel! / Yes, we’ve been trodding on the winepress much too long / Rebel, rebel! / Babylon system is the vampire, yea! (vampire) / Suckin’ the children day by day, yeah! / Me say the Babylon system is the vampire, falling empire, / Suckin’ the blood of the sufferers, yeah! / Building church and university, wooh, yeah! / Deceiving the people continually, yeah! / Me say them graduatin’ thieves and murderers / Look out now they suckin’ the blood of the sufferers (sufferers) / Yea! (sufferers) / Tell the children the truth / Tell the children the truth right now!
Babylon System, Bob Marley (Marley, 1979)
Para Marx, o “capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga” (Marx, 2013, p. 393). Os trabalhadores vendem sua energia vital, seu sangue. O patrão, o capitalista cuja alma é a “alma do capital”, compra e consome a força de trabalho do trabalhador. Como o único impulso vital do capital é o de se autovalorizar ao absorver a maior parte possível de mais-trabalho, quando o trabalhador “consome seu tempo disponível para si mesmo, ele furta o capitalista” (ibid.). O princípio de produtividade como ideal moral que rege o trabalho capitalista, sob o qual está também submetida a menstruação, é uma estratégia antifurto. É sangue fresco, sangue humano, que o vampiro precisa para se manter vivo. Bob Marley nos lembra disso, mas também lembra que a Babilônia é sempre um império em decadência. E que as universidades cumprem seu papel na manutenção deste império.
Para os zapatistas, guerrilha indígena revolucionária organizada desde 1980 nas florestas montanhosas de Chiapas, México, o sistema capitalista é uma Hidra. Conhecemos bem a Hidra, animal mitológico da história do herói Hércules, aquela que tem muitas cabeças, e, se uma é cortada, nascem duas no lugar. Uma das cabeças do monstro é o “coração” ou a “cabeça mãe” que, se atingida, faz com que a besta colapse. Porém, como em toda a cosmologia zapatista, nada é apenas o que aparenta ser. Existe outra hidra, que também é a Hidra Capitalista, um minúsculo animal cnidário de corpo cilíndrico e em forma de pólipo que vive em águas doces e frias. Além de reconstruir seus tentáculos destruídos, essa hidra também se adapta, muta e é capaz de se regenerar por inteira a partir de uma de suas partes decepadas. O capitalismo é ambas as hidras, um “cabezón no te muerde en un sólo lado sino que en muchos lados”, um monstro real, o mais “sanguinario y cruel que hayan conocido la realidad o la ficción desde que la humanidad se dividió en dominadores y dominados” (EZLN, 2015, p. 231).
Ao nomear o capitalismo como Hidra, os zapatistas reconhecem a falta de conceitos e teorias capazes de compreender a multiplicidade do horror capitalista, reconhecem, também, sua persistência, mutação e capacidade de regeneração (EZLN, 2015, p. 324). Porém, esse monstro não é onipotente nem onipresente. Quando falam a nós, os zapatistas nos contam não somente de sua resistência, mas nos recordam de tantas outras acontecendo neste exato momento. São os “de baixo” e os “rebeldes” de todo o mundo que estão, assim como a Hidra, dispostos a recuperar suas antigas posições, aproveitando qualquer sinal de debilidade, qualquer sintoma de guarda baixada (EZLN, 2015, p. 139).
Os zapatistas também nos contam quais são as estratégias para lidar com a Hidra, ou seja, para nos prevenirmos e nos prepararmos para o que está por vir. O que eles nos contam certamente não são todas as estratégias que desenvolveram nestes anos de luta, mas aquelas que consideraram importante que nós saibamos: 1. farejar a Hidra, seguir seus rastros, conhecer seus modos, seus tempos, seus lugares, sua história, sua genealogia; 2. se organizar; 3. criar mais “semilleros”, viveiros onde germinam sementes, nome dado também aos espaços de debate abertos pelos zapatistas. Assim, segue pulsando a esperança zapatista de que um dia, “enterradas bajo tierra estarán, juntas porque son lo mismo, la Hidra y la palabra ‘miedo’” (EZLN, 2015, p. 378).
Para Stengers e Pignarre, intelectuais que iniciaram suas produções por volta de 1990 em algum escritório climatizado na Bélgica e/ou França, o capitalismo é um “sistema feiticeiro”. Em consonância com a proposta zapatista de “farejar a Hidra” a partir da crítica (que sempre é prática e vice-versa), Stengers e Pignarre entendem o trabalho de investigação que fazem como o trabalho de “etologistas do capitalismo” (2011, p. 21). Uma pessoa que pesquisa a partir da etologia não tenta definir o animal estudado a partir do que ele é, mas o descreve a partir do que ele é capaz de fazer em situações concretas, habituais ou inusuais. Ao conhecer o que a besta faz, poderíamos, segundo os autores, conhecer também nossas possibilidades de combatê-la. E o modo como o capitalismo funciona é através de “matar a política”, fazendo uso do que os autores chamam de “alternativa infernal” (Stengers; Pignarre, 2011, p. 25).
As “alternativas infernais” são um conjunto de situações nas quais aparentemente não existe outra saída além da resignação ou do engajamento em denúncias ocas e impotentes (Stengers; Pignarre, 2011, p. 24) que não estão ligadas às práticas e apenas manifestam um desejo de mudança do “sistema”. Diante de situações que degradam ainda mais o bem-estar social (entendendo o social como relações amplas que incluem não humanos), aparentemente podemos apenas aceitar arrochos, reformas, sacrifícios, pois é isso ou… [adicione aqui seu apocalipse de estimação]. A outra opção é, quem sabe, escrever uma carta de repúdio ou texto forte em uma rede social. Estamos o tempo todo sendo confrontadas com alternativas infernais.
Ao operar nessa lógica para orientar nossas escolhas, o que acontece é um constante movimento de destruição de organizações potencialmente perigosas e a reorganização dos fluxos do capitalismo, que reorganiza a si mesmo, como a hidra zapatista, e, ao fazer isso, afeta nossa capacidade de prever o que está por vir, mudando subitamente a “paisagem em que confiaram aqueles que serão confrontados com uma nova alternativa infernal” (Stengers; Pignarre, 2011, p. 26). Mesmo nós, pessoas que cultivam uma dignidade rebelde, podemos ser capturados, ajudando a reproduzir o pensamento-ação. É nesse exato ponto que a feitiçaria capitalista é executada: quando enfeitiçadas, o que temos capturado, roubado de nós, é nossa capacidade de pensar, de imaginar formas de viver nesse mundo que não aceitem e não reproduzam as alternativas infernais (Vanzolini, 2018, p. 334).