Un ventarron de protesta

Soñe que se levantaba

Y que por fin enterraba

Este animal que se apesta

Que grita como una bestia

En medio de su corral

Que nos hace tanto mal y nos causa gran dolor

Nos chupa nuestro sudor

Hay que matarlo compa 

Luna Negra, Los Cojolites

(Los Cojolites, 2008b)

A menstruação também é um fluido vital para alimentar o capitalismo feiticeiro e, sob seu fluxo, proliferam as alternativas infernais. Podemos vê-las em uma série de situações que são muito caras às críticas feministas: 

  • alguns países vêm adotando uma licença remunerada para que pessoas que menstruam possam se afastar de seus trabalho caso tenham menstruações dolorosas ou que de alguma forma impactem seu bem-estar. Quando a discussão chega em países onde o trabalho é precarizado, essa prática é fortemente condenada, pois poderia trazer desvantagens competitivas para mulheres no mercado de trabalho, que já sofrem com salários menores e o risco de demissão pós-parto. 

  • a falta de transparência com relação às consequências da utilização prolongada de pílulas anticoncepcionais vem sendo cada vez mais exposta, ao mesmo tempo que o direito pleno ao aborto vem sendo atacado nos países onde ele existe. Já nos países em que esse direito é inexistente, a luta em favor do aborto é sistematicamente perseguida. 

  • a menstruação como motivo de falta nas escolas em países pobres (com alta taxa de baixa escolaridade entre meninas) é um dos principais focos de preocupação de ações que visam combater a chamada “pobreza menstrual”, ações essas baseadas em fornecimento de infraestrutura minimamente adequada (banheiros, absorventes, remédios). Porém, fatores étnicos e culturais de cuidado com o corpo são ignorados nessas ações, e as pessoas que menstruam são obrigadas a se adaptar à escola (ocidental, colonialista) e não o contrário. 

Essas são somente algumas das situações concretas nas quais as alternativas infernais podem se manifestar na argumentação a favor ou contra alguma solução. A forma como essas situações estão formuladas em si já serve como uma chocadeira para alternativas infernais. Para até mesmo formular cada uma dessas questões de modo a tentar, talvez, se proteger do feitiço lançado, seria necessário criar, como afirmam os zapatistas, um semillero que abrigue um debate que seja abundante em ideias e análises e não uma troca de adjetivos que não passe o limite de 140 caracteres (EZLN, 2015, p. 232). Esse trabalho é enorme, muito maior do que a energia que cada uma de nós temos. É tão grande que olhar para cima (ou para baixo, ou para os lados, para dentro, para fora – o problema está em todos os lugares) e confrontar nossa incapacidade é algo que nos paralisa, envenena nosso pensamento e nos torna vulneráveis à captura (Stengers; Pignarre, 2011, p. 42). 

A descrição da feitiçaria como uma prática que “esvazia” e “tira a força” das pessoas é algo comum nos trabalhos etnográficos (Stutzman, 2013, p. 347), e a busca coletiva por tentar entender quem enfeitiçou quem e porquê faz parte dos processos de enfeitiçamento (Vanzolini, 2018, p. 355). Para Stengers e Pignarre, o grande feito do capitalismo não foi ter acabado com a prática não moderna da feitiçaria – ela nunca deixou de existir –, mas sim ter criado um “sistema de feitiçaria sem feiticeiros” (Stengers; Pignarre, 2011, p. 40), isto é, sem pessoas que pensem em si mesmas dessa forma. Ao transformar a feitiçaria em uma “crença”, em uma “superstição”, o sistema capitalista é operado por pessoas que não precisam de qualquer tipo de proteção ou meios adequados para estabelecer boas relações. 

Ao nomear o capitalismo como sistema feiticeiro, o desdém diante da necessidade de proteção aparece como uma ingenuidade inconsequente. Afirmar a necessidade de se proteger e de aprender formas de resistir à captura de nossa capacidade de pensar é consequente à afirmação de nossa vulnerabilidade. Para Stengers e Pignarre, esse é um problema crucial que precisa ser devidamente localizado: não é sobre uma vulnerabilidade humana geral que os autores estão falando, e, sim, sobre a nossa vulnerabilidade, a vulnerabilidade da comunidade científica, comunidade que é feita de força de trabalho, de corpos e almas, de trabalho vivo. Para resistir à captura são necessárias técnicas de desenfeitiçamento. Porém, assumindo nossa vulnerabilidade, podemos sim ser pegos em uma operação de captura. Nesse caso, as técnicas de desenfeitiçamento nos ajudarão a aprender a “a gritar, a chorar, a encontrar palavras que se levantam como lamentações para falar desta desgraça”, mas também, e principalmente, transformar isso tudo em uma “força que obriga a pensar/sentir/agir” (Stengers; Pignarre, 2011, p. 135). 

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A partir da proposta feiticeira de Stengers e Pignarre, destaco dois conjuntos de técnicas elencados por ambos que foram úteis para compor a estratégica metodológica aqui apresentada: técnicas de reclamação e técnicas de proteção. Ao tomar conhecimento e praticar técnicas para desenfeitiçar, acabamos também conhecendo e praticando as técnicas de enfeitiçamento. Desenfeitiçar e enfeitiçar compartilham muitos caminhos em comum. Ao saber desenfeitiçar, ficamos vulneráveis à feitiçaria. Afinal, relembrando o fetiche da mercadoria, desenfeitiçar é mostrar o corpo que fez o trabalho (de campo, no nosso caso). Nesta proposta metodológica de pesquisa que utiliza o desenfeitiçamento como estratégia para evocar os materiais com os quais queremos trabalhar, reconhecer que somos vulneráveis à captura é reconhecer – e nunca esquecer – que estamos trabalhando em um escritório (às vezes somente um pouco) climatizado, instalado institucionalmente na barriga do monstro

Técnicas de reclamação:

As palavras são importantes para a feitiçaria. Na língua inglesa, a palavra spell carrega essa relação íntima, trazendo consigo os significados de: 

  • soletrar, formar, escrever uma palavra;

  • magia, encanto, conjuro, feitiço;

  • implicar, seduzir;

  • período curto de tempo.

Stengers, assim como Haraway e outras feministas que atuam na crítica da ciência e tecnologia, aponta para a capacidade de ação que as metáforas possuem: “falar de magia não é redutível a uma metáfora, pois o que conta é a maneira pela qual as palavras agem” (Stutzman, 2018, p. 343). As palavras transformam, nos fazem pensar e agir, produzem materialidade e significados, atraem eroticamente a alma humana, nos animam. O ato de  organizar as palavras e colocá-las no mundo, como na escrita, por exemplo, mas também na fala, na declamação, no canto, no sermão, produz um “poder anímico”, no qual o texto possui uma “animação própria”. As palavras no mundo atestam uma dimensão “mais que humana” da realidade.

Para Nego Bispo, “enfeitiçar a língua” é uma estratégia de luta e de resistência contra as colonialidades. Quando o povo da favela fala gíria, está preenchendo a língua portuguesa “com  palavras  potentes  que o próprio colonizador  não  entende, (…) assim, falam português na frente do inimigo sem que ele entenda” (Santos, 2023, p. 4). Nego Bispo responde à importante pergunta de se é possível enfrentar a colonização falando a língua do inimigo. Para o filósofo, o que podemos fazer é enfraquecer a língua dominante e potencializar as palavras enfraquecidas dos colonizados:

Por exemplo, se o inimigo adora dizer desenvolvimento, nós vamos dizer que o desenvolvimento desconecta, que o desenvolvimento é uma variante da cosmofobia. Vamos dizer que a cosmofobia é um vírus pandêmico e botar para ferrar com a  palavra desenvolvimento. Porque a palavra boa é envolvimento. E vamos botar palavras que os próprios eurocolonizadores não têm coragem de falar! (Santos, 2023, p. 3)

Nego Bispo nos conta que a favela adestrou a língua, a enfeitiçou. Enfeitiçar a língua é uma ação prática decolonial, e Nego Bisco ele mesmo se diz um feiticeiro: “feiticeiro  e milagreiro, porque sou politeísta e sei fazer o efeito tanto pelo milagre como pelo feitiço” (Santos, 2023, p. 3) 

As palavras são armadilhas. A maioria das que estão disponíveis para nós nos capturam, e elas mesmas estão capturadas pela “ideologia”, que faz com que ideias possam ser categorizadas como “falsas” ou “verdadeiras” (Stengers; Pignarre, 2011, p. 42). Uma lógica bem diferente daquela praticada por Nego Bispo. Para que as palavras possam ser veículos de transformação, de desenfeitiçamento, a língua precisa se engajar em uma lógica de participação capaz de fazer pensar e agir em uma realidade na qual estamos transitando forçosamente entre “agenciamentos e conexões entre modos de existência heterogêneos” (Stutzman, 2018, p. 342). Ao desenfeitiçar as palavras, somos impelidas a pensar em uma comunicação capaz de reativar vínculos considerados perdidos ou inexistentes, como o vínculo humano (e portanto coletivo) com a menstruação, e toda a profusão de relações entre os mais diferentes seres e entidades que se relacionam com o sangue menstrual.

O desenfeitiçamento requer a capacidade de complexificar a verdade em busca de respostas provisórias que se afastem de critérios universalizantes. Ao tensionar essa argumentação de Stengers e Pignarre, a antropóloga Marina Vanzolini traz elementos de seu trabalho etnográfico sobre feitiçaria junto aos Aweti, que vivem no centro da região do Alto Xingu: 

Quando alguém adoece ou morre na aldeia, pessoas próximas da vítima não param de avançar explicações que elas mesmas caracterizam como “tentativas” sobre o que está acontecendo: “estamos só procurando [a verdade]”, (…)  uma acusação é sempre provisória, mesmo quando fundada numa visão xamânica – pois os Aweti não deixam de considerar a possibilidade de que os xamãs eventualmente se enganem, ou sejam incapazes de ver o que se passa. Seria absurdo dizer que para um Aweti que não importa saber quem é o verdadeiro feiticeiro que está matando um parente; muito pelo contrário, isso é quase tudo o que importa saber, e as pessoas passam muito tempo de suas vidas especulando sobre os pensamentos alheios (talvez como nós). (…) Na prática, histórias de enfeitiçamento têm sempre uma multiplicidade de versões sobre as quais as pessoas especulam sem muito embaraço. O que parecia ser verdadeiro há pouco talvez agora não faça mais sentido, e não há nenhum escândalo lógico nisso. (Vanzolini, 2018, p. 355)

A feitiçaria só pode ser reconhecida pelos vestígios que deixa. Não há instituição de comprovação da verdade capaz de ter autoridade sobre o acontecimento. A forma de pensar dos Aweti, compartilhada por tantos outros povos, foi utilizada como prova da irracionalidade dos “povos primitivos”. Mas Vanzolini aponta que a mutabilidade do que é verdadeiro é a forma desse pensamento, que não aceita ser regido por uma lógica única. Assim, esse pensamento se aproxima, ainda que de modo diferente, das técnicas de desenfeitiçamento propostas por Stengers e Pignarre para resistir à lógica de dominação promovida pelo Estado/capital ao impor a anulação de possíveis e da multiplicidade. 

Reclaim é uma das técnicas de desenfeitiçamento capazes de nos prevenir de ter nossa imaginação capturada e de seguir trabalhando na chave da lógica de dominação, paralisadas e esvaziadas em nossa capacidade de pensar e agir. Stengers e Pignarre trouxeram essa palavra das práticas das bruxas wiccas contemporâneas, e a mantiveram em inglês no livro original em francês, ao lado da palavra companheira empowerment. Reclaim pode significar tanto recuperar, reivindicar (recover, retrive) quanto reclamar (call, protest). Em traduções do trabalho de Stengers para o português, reclaim foi traduzida como “reativar” para reforçar a conexão com a tradição de magia euroamericana. Reativar é um verbo que se liga com o passado, não como forma de repetição nostálgica, mas como ação prática criativa que reivindica transformação social e política (Stutzman, 2018, p. 341).  Já empowerment, comumente traduzido por “empoderamento”, carrega significados de ganhar liberdade, poder ou controle sobre algo; fortalecimento; emancipação; responsabilização. Transladando essas técnicas de desenfeitiçamento para uma realidade mais próxima, reclaim poderia também ser traduzido como “retomada”, em confluência com as lutas de povos indígenas e tradicionais pelas terras. 

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Pensando o desenfeitiçamento como estratégia metodológica para evocar (chamar e fazer com que apareça) as experiências de menstruação, proponho traduzir as técnicas de reclaim/empowerment como técnicas de reclamação. Assumindo que nossa capacidade de imaginar está capturada, pensar e agir junto à menstruação e às palavras lhe fazem companhia utilizando técnicas que tornem possíveis a reclamação são modos de produzir os tipos de dados necessários para a realização de pesquisas cujo material está enfeitiçado. Estas técnicas, desenvolvidas ao longo da pesquisa e em especial durante a execução dos experimentos, foram utilizadas com a intenção de:

  1. construir espaços de vocalização: sabendo que as palavras agem, foi necessário criar ambientes propícios para enunciar a palavra “menstruação” e “sangue menstrual”, ambientes capazes de propiciar e conter a ação que seria produzida. Nesse processo, foi importante falar em voz alta, vocalizar, o que foi feito através de entrevistas, apresentações em congressos etc. Mas também foi importante construir espaços anteriores à voz, os quais pudessem acolhê-la, como foi o caso da utilização do formulário (no qual as pessoas puderam escrever) e de recursos imagéticos;

  2. desconfiar da flecha sangrenta do progresso: ao entrar em contato com experiências de menstruação que acontecem fora dos limites modernos, como experiências nos trabalhos de campo em terras indígenas, experiências relatadas em etnografias junto a povos originários etc., foi necessário criar uma capacidade ampliada de imaginar o que é possível. Ao manter-nos desconfiados da flecha sangrenta do processo, nos fortalecemos, nos emancipamos.

  3. se responsabilizar: eu escolhi o tema dessa pesquisa, escolhi as perguntas, escolhi os objetivos e a hipótese que seguiria. Porém, minhas escolhas não foram individualistas, mas fruto de um debate coletivo. Até chegar a virar tese, muitas pessoas mais experientes me orientaram, incluindo a orientação direta e atenta de Daniela Manica. Aqui, nesta pesquisa, coloquei meu corpo à frente e procurei ser responsável com os materiais com os quais entrei em contato – incluindo eu mesma. Mas uma reclamação só é responsável se for coletiva. Coletivamente, dentro e fora da academia, escolhemos reclamar a menstruação, fazer a palavra “menstruação” agir, e lidar com o que apareceu (e ainda aparecerá).

Técnicas de proteção:

Nós temos que aprender a nos proteger daquilo que nos deixa vulnerável. Devemos nos lembrar que estamos na barriga do monstro. Do ponto de vista de quem considera o capitalismo um sistema feiticeiro, não se proteger é uma imprudência. Stengers e Pignarre apontam tal imprudência na insistência em desmistificar os “outros”, característica de uma produção crítica acadêmica cuja autoconfiança inabalável faz com que se empenhem em um empreendimento de desconstrução das ideologias e aparências pelas quais os “outros” são tidos (Stengers; Pignarre, 2011, p. 45).  Contra essa vulnerabilidade, os autores trazem a noção de espanto (fright) e a produção de círculos. 

Uma advertência antes de prosseguir: Stengers e Pignarre escrevem a partir de quem são, pessoas brancas acadêmicas europeias, assim, pensam as técnicas de proteção a partir disso. É um ponto de vista bastante diferente daquele em que esta tese foi confeccionada, nas periferias da produção do conhecimento mundial. A aproximação com as técnicas de desenfeitiçamento apresentadas por esses autores deve ser cautelosa, já que existe um desbalanço de poder entre a escrita realizada por eles e a leitura que fazemos daqui “de baixo”. Porém, essa aproximação deve ser feita, esse é o imperativo inegociável que vem com a hipótese da insistência. É com cautela criativa que sigo com eles.  

O espanto como prática constante e ativa pode prevenir enfeitiçamentos. O espanto, susto ou sobressalto acontece repentinamente e coloca nosso corpo em estado de alerta, de atenção. O sangue circula com mais rapidez, força e vigor. O espanto prepara o corpo para ter cuidado. Para Stengers e Pignarre, o espanto é “o choque experimentado quando temos que enfrentar a forma fácil e indiferente como nos relacionamos com o nosso próprio poder” (Stengers; Pignarre, 2011, p. 63). Aqui, os autores abrem as feridas que têm que lidar a partir de sua posição: os problemas que levam ao espanto são problemas do colonizador. O fantasma em seu encalço é um fantasma civilizador, o fantasma dos ancestrais que “inventaram” a ciência e a herança ao direito de ser “os cérebros da humanidade” que, mesmo com as melhores intenções do mundo, podem dar sequência à espoliação colonial travestida de humanismo:

Fright may happen when we realize that despite our tolerance, our remorse, our guilt, we haven’t changed all that much. We continue to take up all the space, to occupy all the places. When we ask our victims to pardon us, we like to think of them as ‘ours’, as if the people that we had destroyed were without history, innocent and peaceful lambs, as if we had been the only active powers in a world which merely provides us with the decor for our own crimes.  (Stengers; Pignarre, 2011, p.  63)

Ainda que não usem esses termos, o espanto sugere uma tomada de ação diante da culpa paralisante que a frágil branquitude carrega. O espanto é uma “marca do poder sobre nós daquilo que consideramos inegociável” (Stengers; Pignarre, 2011, p. 65). No caso deles, esse inegociável – com o qual deveriam aprender a negociar com – é a universalidade anônima pela qual se definem enquanto as pessoas que são. Aqui em Pindorama não somos essas mesmas pessoas. Ainda que essa herança fantasmagórica que assusta Stengers e Pignarre esteja presente na terra em que pisamos, também existem muitas outras, em medidas diferentes conforme o território. Nunca foi a universalidade anônima que nos definiu, nossa história de exploração, genocídio, deslocamentos forçados e escravidão impediu que algo assim pudesser ser um consenso sobre o que somos. 

Esse consenso não existe, apesar de todas as tentativas feitas. A ciência brasileira é uma dessas tentativas, criada para lidar com problemas coloniais, em especial o problema que a miscigenação colocava para o projeto eugênico no qual a ciência da época estava ancorada (Schwarcz, 2005). Esse projeto, longe de ter sido descontinuado, transformou-se em hidra e continua espalhando suas cabeças monstruosas por aí. Apesar disso, o espanto pode ser útil para que lidemos com nossas próprias heranças, nossas próprias marcas, sem a paralisia da culpa. Pensando na hipótese da insistência, o espanto pode nos ajudar a encarar a complexidade de ocupar espaços de poder sendo parte de grupos minoritários a partir de nossas próprias territorialidades. Ocupando a pesquisa acadêmica, devemos constantemente nos espantar com o poder que temos em participar de projetos de homogeneização e de “universalização anônima”, ainda que não seja isso que nos defina. O limite entre nosso desejo de transformação e o que de fato podemos fazer ao nos embrenhar voluntariamente para dentro da barriga do monstro é realmente espantoso. Que o espanto nos proteja contra a paralisia.

Quando realizamos ações com potência transformadora, como reclamar, ficamos expostas. Inspirados nas bruxas neopagãs, Stengers e Pignarre desenham a noção de círculo como forma de criação de um espaço protetivo coletivo para situações em que nos colocamos em risco. Tanto o círculo das bruxas quanto os círculos feministas são espaços nos quais são compartilhadas histórias pessoais, tesouros secretos e íntimos que muitas vezes são guardados porque são sofrimentos privados (Stengers; Pignarre, 2011, p. 132). A dinâmica de troca dentro de um círculo não é a da denúncia, e sim a de assistir, tanto no sentido de estar passivamente disponível para o que vai ser compartilhado quanto no sentido de ativamente ajudar, estar ao lado para amparar a caminhada de outra pessoa. 

Ao mesmo tempo que agrega um grupo de pessoas, abrir um círculo também é operar um ato de fechamento, de separação. Ao mesmo tempo que o círculo delimita um tempo e um espaço diferentes daquele fora dele, também é, em si mesmo, algo que compreende um espaço e tempo delimitados. O círculo é aberto para ser desfeito. É provisório. Quando o círculo se rompe, torna quem esteve ali capaz de se encontrar de forma diferente com o que antes era necessário manter fora (Stengers; Pignarre, 2011, p. 139).

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Evocar meus materiais de pesquisa, ou seja, des.enfeitiçá-los, é um movimento que deve, ao mesmo tempo, abrir espaço de ação/reclamação e criar um espaço seguro, fechado, separado, para que possamos, provisoriamente, agir com segurança. Esses espaços contraditórios são técnicas bem conhecidas dentro dos movimentos de resistência, lugares em que pessoas se juntam por afinidade na luta (mulheres, pessoas negras, indígenas, mães, dissidentes de gênero etc.) e, assim, isoladas momentaneamente do caos e da violência do resto do mundo, podem confabular, se fortalecer e planejar o que fazer. As técnicas de proteção servem para evitar o perigo e, ao fazer isso, também tornam possível caminhar mais e com mais vigor. Durante a pesquisa, foram utilizadas, em especial, as seguintes técnicas de proteção:

  1. Guardar segredo:  a menstruação como vivemos em nossa sociedade está enfeitiçada. Para desenfeitiçar, é preciso evocar. Mas isso não significa que tudo que se sabe sobre a menstruação, em todos os lugares, deva ser dito. Essa postura só é defendida por quem acredita que a ciência deve ser a busca pela Verdade. A menstruação tem seus segredos. As pessoas têm seus segredos. A ação de evocar e fazer a menstruação agir não pode ser uma ação que viole e revele segredos. Nem tudo está escrito aqui, apenas o necessário. 

  2. Não ferir os sentimentos estabelecidos: existem outras formas para se proteger que envolve, sim, ferir os sentimentos estabelecidos. Porém, para testar a hipótese desta tese, que é a hipótese da insistência, foi necessário encontrar um caminho de circulação fora do círculo de proteção que permitisse abertura de diálogos. Dentro de um ambiente institucional, com regras hierárquicas e esquemas burocráticos e hereditários de mobilidade, ferir os sentimentos estabelecidos é perigoso demais para quem não se enquadra de saída nesses esquemas.

PARTE 2 _ caixa de ferramentas metodológicas