Nesta seção, apresento um breve aprofundamento conceitual de dois materiais de pesquisa com os quais me relacionei e que são centrais para esta tese: as experiências (em especial de menstruação durante trabalho de campo) e os trajetos menstruais. 

A relação entre produção de conhecimento e experiência é parte essencial do trabalho científico, e é bastante discutida nos STS. Em Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica, Bruno Latour retoma a história do desenvolvimento da bomba de vácuo por Boyle para evidenciar a importância da formação de uma comunidade, uma sociedade política, capaz de conferir autoridade às experiências conduzidas pelos cientistas. Afinal, “as experiências nunca funcionam bem, a bomba vaza” (Latour, 1994, p. 27) e, naqueles tempos, a vida vivida era outra, muito distante da que vivemos hoje, uma sociedade cujos laços sociais são, em grande medida, objetos fabricados em laboratório. O feito de Boyle foi confiar que suas experiências de laboratório tinham mais autoridade do que a palavra de “testemunhas honrosas”, fundando, assim, um repertório que conhecemos bem: “experiência, fato, testemunho, colegas” (ibid., p. 30). 

Etimologicamente, o termo “experiência” deriva do latim e significa “o que foi retirado (ex) de uma prova ou provação (­perientia); um conhecimento adquirido no mundo da empiria, isto é, em contato sensorial com a realidade. Experiência relaciona-se com o que se vê, com o que se toca ou sente” (Amatuzzi, 2007, p. 9). Experiência e perigo compartilham a mesma origem, experiri, que carrega o significado de “tentar”. A noção de experiência como conceito está ligada ao fato de que somos capazes de aprender a partir do “contato sensorial com a realidade”. Tal aprendizado é, em si mesmo, o desenvolvimento do pensamento. A filósofa da ciência e química Isabelle Stengers clama o pensamento como centro do que deve ser a ciência: aprender através da experiência é aprender a pensar e colocar questões por si mesmo, adquirindo gosto e confiança no pensamento (2015, p. 65). Stengers destaca o caráter coletivo do pensamento científico, ou seja, pensar uns com os outros, uns pelos outros, em torno de situações que fazem pensar. A produção de conhecimento está, portanto, atrelada ao gosto pelo pensamento que, por sua vez, é indissociável de uma experiência prática concreta.

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 Recordando, a experiência acontece quando uma situação vivida pode ser, e é,  expressa, comunicada  (Kofes, 2001, p. 164). As experiências de menstruação durante o trabalho de campo, material desta pesquisa, possuem a peculiaridade de serem situações vividas em um contexto de trabalho, e um tipo específico de trabalho, o trabalho de pesquisa acadêmica, cujo objetivo final é a produção de conhecimento científico. Ou seja, estamos lidando com pessoas que menstruam em um contexto profissional, e essas experiências podem impactar suas trajetórias profissionais. Suely Kofes propõe a noção de “trajetória” como ferramenta teórico-metodológica para o trabalho de pesquisa, entendendo o termo como “o processo de configuração de uma experiência social singular” (2001, p. 27). Funcionando como uma espécie de fricção entre as noções de “biografia” e “etnografia”, a potência de se investigar uma trajetória está na possibilidade de escapar da dualidade indivíduo-sociedade, uma vez que “permitiria deslocar-se do sujeito e situar acontecimento biográficos em alocações e deslocamentos no espaço social” (2001, p. 21). 

Daniela Manica realizou em sua pesquisa de doutorado uma etnografia cujo foco central estava na trajetória profissional de um cientista, o ginecologista Elsimar Coutinho, a partir de uma série de narrativas biográficas, como autobiografia, currículo, entrevistas, produções acadêmicas etc. (Manica, 2009). A trajetória foi tomada como fio condutor, o que não significou um enfoque privilegiado na singularidade de um indivíduo, mas permitiu acessar complexas “relações, contextos e estruturas sociais, jogos de poder ou a criação de artefatos e argumentos científicos que circulam por várias esferas sociais” (Manica, 2015, p. 46). Uma imbricação constituinte que perpassa a pessoa, suas empreitadas científicas, a constituição de campos científicos, controvérsias de grande amplitude social, estruturas sociopolíticas, etc., emergiu a partir de uma narrativa biográfica.

O ferramental proposto por Kofes é interessante para pensar as experiências de menstruação em campo, pois “trajetória” está diretamente ligada a deslocamentos. O translado do corpo da pessoa que pesquisa é central aqui, bem como as tensões provocadas nos tempos e espaços envolvidos, uma vez que a menstruação está diretamente atrelada a um processo de aprendizado, memórias familiares, medos, angústias e felicidades que permeiam a vida. No início desta pesquisa, parecia-me interessante pensar em “trajetória menstrual” como material de pesquisa, ou seja, observar como a menstruação aparece dentro de uma trajetória profissional de uma pesquisadora. 

Porém, fui percebendo que, ao seguir aquelas experiências, minha atenção vazou e espalhou-se. A menstruação apareceu como um processo capaz de provocar “curtos-circuitos” no aqui e agora. Inspirada na atenção à trajetória proposta por Kofes, a ideia de “trajeto menstrual” parece-me mais adequada para dar mais enfoque ao caminho da menstruação, com uma atenção não somente direcionada às trajetórias das pesquisadoras – pessoais e profissionais –, mas também às paisagens e aos diversos entes e seres que compõem as experiências vividas. 

O corpo em trajetória é importante, mas o caminho, o trajeto, apareceu como uma imagem persistente durante a pesquisa, à qual me vinculei. Considerando a heterogeneidade dos materiais trabalhados (menstruações, sangue menstrual, experiências, trajetos menstruais e conhecimento científico, coletados em meu diário de campo, documentos escritos, falas públicas, experimentações audiovisuais etc.), a intenção de ancorar a investigação em trajetos busca observar a “interconexão de temporalidades e de lugares” (Kofes, 2001, p. 19), assim como a multiplicidade de vazamentos e manchas que o sangue menstrual pode provocar quando se espalha por diferentes dimensões da vida.

PARTE 1 _ materiais Partindo de encruzilhadas e atravessando labirintos

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