I am here because I am a woman of the border: between places, between identities, between languages, between cultures, between longings and illusions, one foot in the academy and one foot out. (Behar, 1996, p. 162)
Cena 1: Minha mãe prepara um bolo de limão. Meu favorito. Tenho 12 anos e muito constrangimento em mim. Ela insistiu em fazer uma festa, o acontecimento merecia uma comemoração. Mas eu não estava feliz, estava com medo e a festa pouco me importava. Só pensava no que ia fazer agora, daqui pra frente. Minha vida mudou no momento em que vi uma mancha marrom escura na minha calcinha.
Cena 2: A doutora tira do armário umas cinco caixas rosinhas de pílulas anticoncepcionais. Amostra grátis. Dei sorte, ela me disse, “ontem mesmo deixaram aqui”. “Experimenta essa, é boa pra espinha, é fraquinha, a maioria das mulheres se dá bem. Toma todo dia no mesmo horário.” Eu tinha 13 anos e nem beijo na boca tinha dado. Mas a doutora disse que ia ajudar com as espinhas. Segui tomando por 15 anos.
Meu primeiro trabalho foi numa firma familiar. Os chefes eram um pai e dois filhos. Todos os outros funcionários da empresa eram mulheres. Um dos filhos gostava de falar, com certo prazer sádico em sua voz, que era melhor contratar mulher. Dizia que era mais fácil, que evitava problemas desagradáveis que um ambiente sério de trabalho não podia permitir, tal como pessoas perdendo tempo com flertes e “namoricos”. Eu era muito novinha, não sabia de quase nada da vida, mas segurava a risada cada vez que ouvia aquelas palavras sem pé nem cabeça. Não sabia de nada, mas sabia mais que o chefinho. Sabia, por exemplo, que em uma cabine de banheiro feminino cabiam perfeitamente dois corpos. Um sentando e um em pé. Sabia também que, em caso de descoberta de tal situação, um leque de desculpas fáceis e rápidas poderiam ser acionadas. “É que minha amiga está passando mal, vim ajudar.” “Ela está bem melhor agora, pode apostar! Só com as pernas um pouco moles…”. O que eu não sabia, ainda, era que por trás do aparente elogio (“é mais fácil trabalhar com mulheres”) estava escondida uma perversidade dilacerante (“é mais fácil explorar as mulheres”). Mas não demorei a descobrir, na carne, o ímpeto vampiresco do capitalista, sugando com voracidade minha energia vital, comprada no mercado a preços extremamente módicos e, claro, sem nenhum tipo de benefício ou garantias.
Esse pensamento-memória retornou ao meu corpo, tomando-o de assalto, crescendo em meu ventre, se desenrolando em minha espinha e ficando ali por algum tempo. O gatilho foi quando ouvi a frase “para mim, realmente, os dias de menstruação foram de férias, eu li muita literatura enquanto eu estava nos meus dias fora da atividade”, dita de forma rápida e despretensiosa por Esther Jean Langdon durante a Oficina Internacional Perspectivas feministas na Amazônia Indígena, promovida pelo Centro de Estudos Ameríndios (CEstA – USP), ocorrida de forma online em 15 de junho de 2021. Pensar menstruação, trabalho, produtividade e não-trabalho (férias) me levou a pensar sobre meu próprio corpo generificado – corpo de mulher – submetido às torturas diárias do trabalho fabril e alienado. Incrivelmente, por mais que me esforce, não consigo recordar como era menstruar nessas condições.
Cena 3: Ela nem tinha chegado direito na sala de aula e me disse que precisa ir embora. L. é minha educanda na ONG em que trabalho, tem 14 anos, é deficiente intelectual, negra e mora em um abrigo. Pergunto o que aconteceu e ela me diz que tem “um problema vermelho”. Espalha-se um burburinho entre nós mulheres: “Quem tem absorvente?”. Encontramos um e L. fica mais tranquila. Passada meia hora ela me diz que quer ir embora porque na ONG não lhe dão remédio e me conta que no abrigo todo mês ela toma dois, um para não ter neném e outro para não ter dor. Pergunto então se ela sabe o que está se passando no corpo dela, se sabe por que está com dor. Ela me responde que não.
Cena 4: Na casa dos meus avós paternos tinha um apelido para os “absorventes”, que eram chamados com carinho e jocosidade de “bombons”. Meus avós tiveram quatro filhos, duas mulheres e dois homens. Meu avô dizia, entre risadas deliciosas, que sempre ficava impressionado com a quantidade de dinheiro que gastava todo mês com absorventes: “É impressionante, acaba mais rápido que bombom!”, e a vó Maria respondia: “ô David, deixa disso homem, isso não tem como, a gente usa o que precisa!”.
Esta tese é uma continuidade dos meus trabalhos desenvolvidos anteriormente. O tema do corpo sempre me interessou, em especial quando aliado às tecnologias que nos constituem. Em minha primeira graduação em Design de Produto, que pude realizar graças à uma bolsa integral do PROUNI, projetei um massageador erótico para o clitóris como trabalho de conclusão de curso, desenvolvendo uma pesquisa sobre o controle dos corpos das mulheres através da biomedicina e a associação entre o desenvolvimento tecnológico do vibrador com os tratamentos da então doença chamada histeria, bem como a posterior apropriação desse equipamento por mulheres feministas. Anos depois, realizei uma segunda graduação, em ciências sociais na Universidade de São Paulo, onde transitei principalmente entre as disciplinas de antropologia sobre estudos de gênero e sexualidade, formas expressivas e etnologia. Durante o mestrado em Culturas e Identidades Brasileiras, realizei uma etnografia junto a um grupo de “biohackers” que atuavam de forma autônoma dentro da Universidade de São Paulo. Acompanhei a construção de uma minicentrífuga de bancada, analisando tal prática como uma forma de insistir em permanecer na universidade de uma forma alegre, ou seja, de modo a aumentar a potência coletiva de agir e pensar (Costa, 2019b).
Enxergo esta pesquisa de doutorado como uma convergência de estudos que venho desenvolvendo há mais de quinze anos, uma vez que meu foco está nos modos de produção, validação e circulação de conhecimento científico, porém, costurando, agora, com questões de gênero, corpo e tecnologias.
Cena 5: Em 2015, vejo pela primeira vez a anatomia completa do clitóris e sinto uma vergonha que rapidamente dá lugar à raiva: quatro anos antes, na faculdade de Design de Produto, havia projetado como trabalho de conclusão um massageador erótico para o clitóris e não havia visto essa ilustração, um óbvio erro de projeto. Mas sou informada pela reportagem que leio que o artigo de uma urologista australiana responsável por “resgatar” essa imagem da literatura médica do século 19 e dar-lhe tridimensionalidade é do mesmo ano que desenvolvi meu projeto. Apenas em 2009 mulheres puderam cruzar com a anatomia de algo tão importante em seus corpos.
Cena 6: No mesmo ano, 2015, decido parar de usar absorventes e passo a usar um coletor menstrual quase na mesma época em que cruzava com uma campanha de doação de absorventes para mulheres encarceradas, promovida por coletivos de mulheres. Na reportagem que divulgava a campanha, uma história que arrepiou minha imaginação: o Estado fornece uma cota insuficiente de absorventes para as mais de 35 mil mulheres encarceradas, que muitas vezes recorrem a miolo de pão como alternativa disponível.
A menstruação é um problema que me persegue desde sempre, já que a promessa de que um dia eu menstruaria esteve comigo a partir do momento em que foi constatada a existência de um aparelho reprodutor feminino em meu corpo. Pretendo agora perseguir este problema. Ao assumir esse lugar como pessoa que pesquisa experiências menstruais que ocorreram durante a produção de conhecimento científico em antropologia, acabei por virar uma espécie de ouvido profundo com pernas e braços e uma antena na cabeça. As histórias pessoais que só emergem parcialmente nos corredores ou nos bares – aí com palavras mais cheias – passaram a me interessar muito, e sei também que meu interesse e atenção passaram a importar para muitas de nós que estavam com as palavras pulando no peito. Algumas de nós, assim como eu, também têm a menstruação como foco de atenção em suas pesquisas. E das histórias-confissões que já ouvi, muitas delas contam trajetórias cheias de tropeços e problemas com a menstruação, das quais eu compartilho também. Mas algumas histórias me atravessam mais certeiramente, e essas dizem respeito a uma profunda inadequação entre o que vivenciamos com o corpo e as atribuições de gênero que nos foram impostas. Ouvindo essas histórias, meu peito se enche e a garganta fecha.
Preciso dizer quem eu sou, mas essa tarefa se torna cada vez mais difícil. A cada dia aumenta o martírio que vem com o ato de preencher um questionário socioeconômico. A vergonhosa opção “prefiro não responder” tem sido minha aliada nestes tempos. Mas sim, eu sei, preciso dizer quem eu sou. Preciso me localizar para produzir o tipo de conhecimento que desejo e acredito. Mas como fazer isso sem lançar mão de uma lista de identidades frouxas e violentas que dizem tão pouco sobre mim? E como me negar a usar essas identidades sem que passe imune pelas responsabilidades e heranças que carrego? De uma coisa sei, com mais certeza do que outras: sou uma pessoa trabalhadora. De uma família de trabalhadores, gente humilde e simples. O trabalho intelectual foi, e em certa medida ainda é, algo imponderável para nós. Sou uma trabalhadora que detesta trabalho. Que reconheceu na dor e na loucura da labuta diária a luta de classes, que se reconheceu como pessoa despossuída e alienada daquilo que a energia vital era capaz de produzir. Estar e permanecer na universidade são, para mim, atos de renúncia e revanche, ou ainda, quem sabe, vingança – na medida do possível – diante da mediocridade intelectual imposta pelo regime de trabalho capitalista a nós, pessoas trabalhadoras.
Outra coisa que sei com certeza é que cresci na margem esquerda do rio Tietê, na cidade de São Paulo, em um bairro com nome de santo, o Parque São Jorge. Convivi com o rio semimorto pelo descaso urbano por toda a minha vida, e sei que carrego comigo essas marcas de violência da cidade contra qualquer tentativa de vida pujante, apesar desta tentar, e muito, prosperar. Sou herdeira dessa situação esquizofrênica de estar no centro da periferia mundial, crescida na cegueira de uma grandeza tão insignificante. Participei e participo da grande coreografia de exclusão que a cidade proporciona, rica em produzir apartheids racializados (que são também de classe) e zonas permanentes de impossibilidades da humanização do outro (como as cracolândias). Nesta cidade estudei a maior parte da minha vida em escolas públicas, e os piores anos da minha vida foram como bolsista em uma escola particular, mas, apesar de minha família ser de gente simples e humilde, a fome nunca nos visitou, nem a chuva derrubou nosso lar. Nesta cidade fui racializada de formas ambíguas pelos espaços onde circulei. Nesta cidade, nem em nenhuma outra, nunca comi caviar, andei de helicóptero ou achei normal que serviçais limpassem meu banheiro. E nunca encontrei paz em uma fortaleza cercada por concreto e armas.
E também sei que me disseram “mulher”. Suspeito que tal atribuição foi dada porque fui prometida à menstruação. Mas…
Quando me perguntam se sou mulher, recuso, não entendo a que geografia de meu corpo e a qual lugar de meu desejo que esta palavra indica. Mas quando não me perguntam, sinto que sou. (…) Sinto que sou onde não penso. (…) Onde eu penso eu não existo, eu não sou. Por isso a palavra me escapa. Por isso não entendo o que você quer dizer quando diz “mulher”. Viajo na minha extrema liberdade, incondicionada, plena de possibilidades. Não serei apreensível em categorias, em discursos formais, não facilitarei a apropriação, o esclarecimento, o reconhecimento. (Pisani, 2015)
São desses encontros de caminhos que falo, entrecortados pela recusa e pelo trauma – pessoal e coletivo. E falo também partindo de certa esperança difusa e tão inominável quanto eu mesma, a qual permite que eu me mova e que eu permaneça. Uma esperança que me inspira dignidade plena e irrestrita. É por isso que pesquiso e insisto em escrever o que encontro.
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Sei também que preciso localizar o “nós” que, de tempos em tempos, toma frente dentro desta tese. Esses coletivos que componho são múltiplos e instáveis. Procuro delimitá-los conforme eles se mostram no texto, mesmo que de forma precária. Porém, gostaria de demarcar dois desses coletivos que foram fundamentais para formatar as encruzilhadas e labirintos dos percursos que foram trilhados durante a pesquisa. O primeiro deles é o coletivo formado pelas pessoas que compõem as comunidades acadêmicas e que estavam trabalhando durante a pandemia de covid-19. O segundo é o coletivo formado por pessoas que ingressaram na universidade, em especialmente as do sistema público, graças a programas estabelecidos a partir de políticas públicas.
Entrei no doutorado em 2020. Fui em uma aula e, na semana seguinte, foi decretado o lockdown. Esta tese foi gestada durante a pandemia de covid-19 e sinto, nesse momento em que escrevo, no primeiro trimestre de 2024, que não tenho capacidade de avaliar os impactos desse fato nos caminhos percorridos durante a pesquisa. Mas tenho certeza que são muitas as marcas deixadas pela experiência pessoal e coletiva da pandemia, e suspeito que essas marcas sejam estruturantes do que apresento aqui. Encontro rastros emocionais e materiais de cada momento vivido: o susto, o medo, a quarentena, o isolamento, o medo, o luto não vivido, o desolamento, a saudade, o medo, a paranoia, a raiva e o retorno – primeiro cheio de vontade, depois, ganhando tons de uma estranha ansiedade social, e depois, ainda, no atual ritmo acelerado, entrecortado por adoecimento.
Fiz o que fiz por causa da pandemia. Meu projeto em si mudou. Quando entrei no doutorado, intencionava fazer uma etnografia junto a um grupo de obstetrizes que organizaram uma coletiva de ginecologia autônoma e biohacker chamada “Parteironas Bruxonas”, que rodam um projeto cujo nome é “XXT Lab”. A coletiva não aguentou o baque da pandemia e se desfez. Foi um momento de assistir, impotente, a tudo o que eu havia sonhado tanto se desmanchar (fazer doutorado para mim, durante muitos e muitos anos, foi apenas um sonho). Minha reação foi abraçar um isolamento profundo, que me permitiu estar comigo mesma e com meu sangue menstrual. Já no meu projeto original, eu tinha um grande interesse pela menstruação, e pela forma como pessoas que menstruam e que adotam como política de vida o DIY praticavam e pensavam nesse processo. Porém, com a pandemia, o lockdown, a quarentena e a reclusão, estar comigo mesma e com meu sangue foi o jeito que encontrei de continuar. Os experimentos que realizei e apresento aqui são fruto deste esquisito e traumático tempo de exceção. Agora, é momento de compartilhar o que produzi, o que produzimos todos nós, e tatear coletivamente modos de estar nesse mundo transformado.
O segundo grupo que componho e que sinto que está na base de muitos “nós” acionados aqui é o daquelas pessoas que ingressaram nas universidades, especialmente as do sistema público, graças a programas estabelecidos a partir de políticas públicas. Minha primeira graduação, em Design de Produto, pude fazer graças ao programa PROUNI. Na época, lembro que não prestei vestibular para nenhuma universidade pública. Não porque achasse que não conseguiria entrar, mas simplesmente porque não sabia que existia essa possibilidade. Fui saber mais tarde, trabalhando e pesquisando. Na minha segunda graduação, em Ciências Sociais, na Universidade de São Paulo, pude entrar graças à pontuação diferenciada para pessoas que estudaram em escolas públicas. Quando entrei na USP, ainda não havia o sistema de cotas étnico-raciais para ingresso, que foi implementado apenas em 2018. Na Unicamp, universidade que infelizmente vivenciei pouco por causa da pandemia, conheci pessoas que haviam entrado na universidade pelo vestibular indígena. Pude também acompanhar discussões e implementações de cotas na pós-graduação, incluindo agora pessoas com deficiência e pessoas trans. No tempo em que trilho meu caminho na universidade, tenho visto com muita alegria a transformação do corpo discente e, em certa medida, do corpo docente também.
Acredito que meu interesse por realizar uma pesquisa-com-quem-pesquisa emerge desse coletivo de pessoas do qual faço parte. Quando contei para Varin Mema, antropóloga Marubo que entrevistei durante a pesquisa, que meu interesse de pesquisa, a princípio, eram as experiências de menstruação vivenciadas por antropólogas durante o trabalho de campo, Varin sorriu e lembrou que quis estudar antropologia porque também tinha esse interesse em tentar entender quem são essas “outras” pessoas que, de tempos em tempos, ela encontrava na aldeia. Hugo Virgílio de Oliveira, que compõe comigo esse “nós” do qual falo, relata no texto “Um estranho no ninho: o corpo dos antropólogos e seus efeitos no trabalho de campo” (2019) como se deu seu interesse por estudar antropologia: foi conhecendo antropólogos que desenvolviam uma pesquisa na ocupação onde ele morava. Após começar a frequentar a graduação, resolveu fazer uma espécie de “meta-etnografia”, e passou a integrar a equipe de antropólogos que trabalhavam na ocupação, mas para estudar o efeito dos seus corpos ali, o que o fazia assumir um lugar dúbio de interlocutor-pesquisador, às voltas com o sentimento de estar sendo um possível “espião”, um agente duplo.
Não me esqueço quando Amandinha, minha amiga, foi assistir a uma aula da graduação que eu cursava na época, em Ciências Sociais. Ela foi a uma aula de antropologia. Lembro-me perfeitamente de encontrá-la depois da aula com o semblante muito sério. Perguntei como tinha sido a aula, ela me olhou com um olhar profundo e me disse: “foi estranho… eles estavam falando sobre mim…”. Acredito que essa seja uma sensação recorrente que nós sentimos, e que prenuncia grandes desafios que enfrentaremos se quisermos continuar dentro das universidades – aqui, o “nós” é o coletivo de acadêmicos como um todo, pois as tensões estão colocadas para todos.
Um exemplo desses tensionamentos está no modo como trabalhamos e como nomeamos o trabalho que fazemos, e como esse trabalho é “enquadrado” nos esquemas de publicação. A antropóloga Ana Clara Damásio conta que a etnografia que conduziu com suas parentes foi sistematicamente cobrada pelos pares de ser nomeada como “autoetnografia”, a despeito do entendimento da autora de que tal modo de produção de conhecimento não era o que ela tinha feito:
(…) eu tinha um rosto no meu texto. Era um rosto compartilhado. Rosto de parentes pretas e negras de pele clara. Estava lá também a nossa origem piauiense e a trajetória delas enquanto empregadas domésticas e lavradoras. Apesar de eu não ver os rostos dos pareceristas, eles me viam, classificavam, racializavam e em algum momento associavam o fato de eu falar sobre minhas parentes-interlocutoras à autoetnografia. O que tem a ver uma coisa com a outra? Por que eclodiam comentários como: “Recomendo fortemente algumas referências importantes para um mergulho mais profundo na autoetnografia”; ou então, “Parece que o artigo é essencialmente um ensaio autoetnográfico, e não tanto etnográfico. Num ensaio autoetnográfico é perfeitamente aceitável a deambulação da autora pelos processos de consciência”. (…) A autoetnografia, nessa situação específica, serve para inscrever determinados corpos, pesquisas e temáticas em determinados espaços, por mais que esses mesmos corpos não queiram estar ali. E essa inscrição pode ser extremamente violenta, pois inscreve de forma sutil que nós (indígenas, negros, ciganos, quilombolas) somos “quase da família” (Dias, 2019), para a antropologia, somos quase antropólogos, somos contaminados demais por aquilo que pesquisamos e assim não poderíamos verdadeiramente conhecer. (Damásio, 2022, p. 8)
O antropólogo Felipe Sotto Maior Cruz nomeia como “movimento condescendente” o modo pelo qual pessoas indígenas são inseridas e situadas em um imaginário previamente destinado. Dentro da universidade, em especial dentro da antropologia, esse lugar é o de “fornecedores de matéria-prima intelectual ou de validadores teóricos” (2017, p. 103). Não é raro que as pessoas indígenas antropólogas e estudantes sintam as reverberações dos ecos tutelares que há séculos informam o modo pelo qual são vistas e tratadas, a saber, como inaptas de responder plenamente por si mesmas, sem nenhum tipo de protagonismo (ibid., p. 101). Cruz aponta uma série de comportamentos corporais reificados nos espaços acadêmicos que acabam por diminuir a potência de pessoas indígenas, como as barreiras linguísticas e a obrigação de manejar o “português acadêmico” que, ao invés de “maximizar a comunicação”, cria espaços de exclusão baseados na erudição (ibid., p. 102). Outro exemplo é a constante deslegitimação da fala de acadêmicos indígenas, que não raramente é acompanhada da devida introdução ou conclusão explicativa de um pesquisador não-indígena, tirando, assim, dos indígenas, “a palavra final, ou concedendo-lhes apenas a demonstração de seu exotismo” (ibid., p. 103).
Antes do momento atual, alguns de “nós” conseguimos entrar e se manter na universidade, produzindo conhecimento e lutando para que as políticas públicas que hoje estão em vigor passassem a existir. O que eu e este coletivo de pessoas que faço parte vivenciamos é uma nova situação. Fazemos parte de um movimento muito recente de entrada nas universidades propiciado por políticas públicas. Como apontado por Oliveira (2019), Damásio (2022) e Cruz (2017), existem muitos desafios e perigos colocados no caminho. Mas também temos esperanças de que agora, com um corpo (acadêmico) maior e mais diverso, tenhamos forças para continuar lutando por mudanças maiores e mais diversas.