Nesta seção, apresento com mais detalhes a metodologia e os materiais utilizados. Ambos serão discutidos com profundidade ao longo da tese, pois compõem grande parte do trabalho de experimentação realizado. A escolha da metodologia central utilizada, a etnografia, partiu da adequação desta prática de pesquisa aos objetos escolhidos para serem trabalhados, a saber: 1) expressões de experiências de menstruação durante trabalho de campo em antropologia, em especial dentro da área de etnologia e acontecidos em terras indígenas; 2) modos possíveis de fazer com que as marcas que os corpos possuem sejam manifestas de forma segura dentro da produção de conhecimento acadêmico/institucional.

O encontro da etnografia com o campo de estudos da ciência, tecnologia e sociedade (CTS) vem gerando pesquisas muito relevantes. Um exemplo fundante é a etnografia conduzida pelo sociólogo Bruno Latour, que pôde estar junto a cientistas nos laboratórios, focando sua análise naquilo que chamou de “ciência em ação” (2000). A etnografia como modo de fazer pesquisa permite que a experiência seja vivida na contradição sociotécnica “quente”, ou seja, antes desta estar “fria”, estável, aceita pelos pares como um “fato científico”. Na instabilidade da ciência em ação e da etnografia da produção científica, também quente e instável no momento em que está sendo realizada, é possível extrapolar o laboratório, recinto demarcado como local estéril de uma ciência “desinteressada”, e, como explicita o subtítulo do livro de Latour, “seguir cientistas e engenheiros sociedade afora”. Essa imagem da etnografia como modo de trabalho que é capaz de criar um “congelamento” de um momento “quente” e “impuro” é bastante interessante para uma pesquisa que lida com menstruações nos corpos de quem pesquisa, já que a menstruação ela mesma é materialmente quente e tratada socialmente como impura. 

Sou uma cientista [social], pesquisando experiências vividas por outras cientistas. Por isso, entendo que minha pesquisa está vinculada, em especial, à grande área da antropologia da ciência e tecnologia, com diálogos indisciplinados com a filosofia, as artes, o design etc. Assim, a etnografia que realizei possui um campo um tanto gelatinoso, coagulado, que venho fluindo, e tateia os circuitos em que os afetos e saberes científicos e tecnológicos emergem enquanto circulam. Os materiais com os quais trabalhei são nódulos de uma complexa e dinâmica rede de relações (Monteiro, 2012, p. 145) na qual esta tese foi gestada. E, entre os materiais de trabalho que compõem o campo em que esta etnografia foi realizada, está a minha própria menstruação. Esse foi um desafio metodológico que se apresentou logo de saída: como dar conta do fato de estar etnografando algo que acontece comigo mesma?

Encontro em Donna Haraway uma parceria boa para pensar essa mistura: ao interrogar-se sobre a crítica feminista e socialista à ciência e à tecnologia, bem como sobre a possibilidade de se produzir pesquisas científicas partindo de um posicionamento eminentemente político, a bióloga e filósofa constrói o que chama de “saberes localizados” (1995). Assumir a perspectiva sempre parcial da produção do conhecimento é uma saída para a questão da objetividade e da separação entre sujeito e objeto, desfazendo sua transcendência ao propor que o “objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso” (Haraway, 1995, p. 36). 

A feitura de um saber localizado implica repensar a própria escrita etnográfica. A antropóloga Silvana Nascimento defende que as experiências de corpos marcados têm a potência de se materializar em diferentes formas de escrita encarnadas que se apropriam da ambiguidade e da fronteira como ferramentas do pensamento, assumindo uma posição multilocalizada e plural. Propor uma etnografia localizada é entendê-la como encarnada e situada, incluindo silenciamentos, marcas e ruídos que impedem que o sentido que produzem seja único, ofertando uma visão caleidoscópica. Portanto, considero que, nesta tese, reclamar uma “perspectiva etnográfica feminista” e expressamente anticapitalista e decolonial, confeccionada a partir das bordas, é criar a possibilidade de trazer à escrita propriamente etnográfica o que estava antes escanteado e de que este trabalho possa ser reconhecido e aceito como sempre artesanal, parcial, fronteiriço (Nascimento, 2019, p. 469) e rebelde.

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Na etnografia que realizei, as imagens, em várias configurações, se impuseram e tomaram conta do trabalho. Para conseguir manejá-las, procurei aproximar uma “etnografia da ciência e da tecnologia” com ferramentas teórico-metodológicas advindas da antropologia das formas expressivas. Procurei alinhar meu trabalho a muitos outros que consideram as imagens, em um espectro abrangente de técnicas capaz de produzi-las, como grafias, ou seja, um tipo de inscrição que se assemelha à escrita e que não se basta a produzir “modos de ver”, mas também produz modos de narrar e imaginar (Bruno, 2019, p. 201). Assim, realizo uma espécie de contrabando (in)disciplinar, aproximando o domínio das formas expressivas do domínio da antropologia da ciência e da tecnologia, continuando trabalhos de incorporação das leituras e propostas críticas sobre um fazer científico situado (Haraway, 1995, 2016) através de diferentes grafias que já venho realizando há algum tempo e que ocupam um lugar central na forma como venho produzindo conhecimento (Costa, 2019b). 

Trabalhar a imagem do sangue menstrual e imagens da menstruação, de modo geral, é um movimento não somente potente para fazer pensar (e fazer falar), mas também perfeitamente adequado ao que o próprio sangue menstrual demanda de nós quando nos permitimos ser olhadas por ele. Para isso, é necessário enfrentar a “esperada invisibilidade pública” (Manica; Rios, 2017, p. 9) que a menstruação possui de forma hegemônica em nossa sociedade, e experimentar possibilidades estéticas que tornem o sangue menstrual visível. E garantir que as imagens das menstruações possam existir de forma digna é uma ação política potente. Citando Didi-Huberman, a antropóloga Fabiana Bruno pontua um caráter fascinante e arrebatador das imagens: que elas sobrevivem a nós. Quem passa pelas imagens somos nós, e quem dura – no passado e no futuro – são as imagens. Como argumento ao longo da tese, ao abrirmos nossa sensibilidade para as complexidades que as menstruações carregam, aprendemos que, assim como a imagem, o sangue menstrual também carrega “mais memórias e mais futuros do que quem a olha” (Bruno, 2019, p. 210). É neste tempo-espaço fantasmagórico da suspensão da linearidade e da supervivência de gestos e emoções que executei os experimentos que compõem esta tese.

Materiais

O conjunto de materiais sobre o qual me debrucei é composto de: artigos, dissertações, teses e livros escritos por antropólogas; falas públicas realizadas em contextos acadêmicos, em especial falas realizadas durante a mesa “Mulheres em campo, diálogos em movimento” (2021), parte da “Oficina Internacional - Perspectivas feministas na Amazônia Indígena”, que contou com Ester Langdon, Braulina Aurora Baniwa, Bruna Franchetto, Luisa Elvira Belaunde, Varin Mema (Nelly Barbosa Duarte Dollis) e Marta Rosa Amoroso (debatedora); depoimentos concedidos em entrevistas publicadas em revistas científicas, como a entrevista de Luisa Elvira Belaunde à Graziele Dainese e Lauriene Seraguza; cinco entrevistas com antropólogas em profundidade realizadas à distância através de aplicativos para reunião online com Joana Oliveira Cabral, Lauriene Seraguza, Gabriela Aguillar Leite, Isabel Santana de Rose e Varin Mema; dez respostas anônimas a um formulário de pesquisa que foi divulgado em listas de e-mails de programas de pós-graduação em antropologia e correlatos (programas interdisciplinares que apresentam diálogos com antropologia, como ciências sociais) em outubro de 2021. 

Além disso, o sangue menstrual e as menstruações são os materiais básicos com os quais realizei esta pesquisa. O modo como, a princípio, me aproximei de ambos foi através das lentes da antropologia. Tendo como referência trabalhos antropológicos, podemos considerar que “menstruar” é um processo complexo ligado a outras zonas de experiência que perpassam diferentes culturas em diferentes tempos e espaços, como gravidez, aborto, parto, menarca e menopausa. O processo de menstruar não parte de uma divisão rígida entre corpo-sujeito e mundo, entendendo que ambos se “entrelaçam continuamente, em movimento ininterrupto” (Nascimento, 2019, p. 461). Portanto, nesta tese, a menstruação é pensada como parte do próprio ser do corpo menstruado, à medida que esse corpo vai trilhando o ambiente. 

Uma consequência que pulsa ao experimentar a menstruação como necessariamente constituída a partir de relações entrelaçadas entre corpo-sujeito e mundo, praticadas e aprendidas a cada vez, é a pluralidade de possíveis. Desse modo, o que seria compartilhado entre os corpos que menstruam não seria uma potência biológica para menstruar, que receberia um conteúdo cultural diferenciado, mas, sim, a habilidade de corpos em lidar melhor ou pior – individual e coletivamente – com a tarefa de menstruar quando estão em relações com certos ambientes. A habilidade de menstruar é desafiada constantemente por situações não-familiares. A menstruação é o material-base que foi trabalhado nesta tese e a partir do qual os outros materiais vazaram.

APRESENTAÇÃO

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