Infelizmente, para a maioria dos antropólogos, o sangue das mulheres não é o pedaço interessante da estória. (BELAUNDE, 2006, p. 225)
Entrei no auditório e o simpósio já havia começado fazia algum tempo. “A universidade não respeita nosso sangue” foi uma das primeiras frases que ouvi e que me atravessou, como um sopro capaz de perpassar a carne. A fala compunha o simpósio Indigenous Women in Politics: Empowerment, Activism and Representation durante a 18ª IUAES, ocorrida em 2018 na UFSC. Eram oito mulheres indígenas na mesa e, quando comecei a assistir, o assunto eram as possibilidades de entrada e permanência na universidade. A menstruação ganhou centralidade na discussão, uma vez que o resguardo necessário transformava aqueles corpos em “menos produtivos” do ponto de vista de uma lógica institucional de produção de conhecimento, calcada em recompensa por produtividade. A principal crítica feita era que a discussão não deveria girar em torno de ações pontuais para “compensar” a “improdutividade” desses corpos, mas sim a necessidade de uma profunda desestruturação da própria lógica produtivista. Essas falas me atravessaram, e me transformaram.
O tema desta tese é a presença do corpo de quem pesquisa na produção do conhecimento científico. Partindo do alerta de antropólogas indígenas sobre a falta de respeito da academia com os cuidados necessários para se ter uma menstruação digna, a primeira questão de pesquisa que animou esta tese foi: “se e como a experiência de menstruar durante encontros etnográficos é expressa no modo como se produz conhecimento antropológico?”. Ao iniciar os trabalhos, tendo como centro metodológico a etnografia, lidei com as armadilhas colocadas por essa pergunta, em especial o fato de saber, desde o começo, que não, essas experiências não são expressas. Assim, eu teria que utilizar uma metodologia capaz de evocá-las. Foi então que uma pergunta anterior revelou-se escondida dentro da primeira: “se e como é possível manifestar as marcas que os corpos possuem e, de forma segura, insistir em produzir conhecimento acadêmico/institucional?”. Para seguir com esta questão, aliei-me com teóricas feministas dos estudos sociais da ciência e tecnologia e trabalhei com a hipótese de insistir em estar e permanecer produzindo conhecimento através da confecção de conversas que, a princípio, não vão “ferir os sentimentos estabelecidos” (Stengers, 2002) da comunidade científica.
Esta tese é resultado de uma pesquisa não disciplinar, realizada nas fronteiras porosas entre: estudos sociais da ciência e tecnologia (CTS), ou science and technology studies (STS); a antropologia, em especial a antropologia da ciência e tecnologia, a antropologia das formas expressivas e a etnologia; a filosofia, no campo das críticas feministas à ciência e tecnologia; o design, as artes visuais, as artes manuais e o artesanato. Vinculei-me a um conjunto de práticas teórico-metodológicas críticas que estão associadas a pensamentos feministas, anticapitalistas e decoloniais. Por isso, esta tese carrega consigo alguma esperança, ainda (bem) que vacilante. Tal desejo é expresso em práticas experimentais, especulativas e ficcionais que um saber localizado requer (Mclean, 2017; Haraway, 2011). De forma geral, seguindo a trilha proposta pela linha de pesquisa a partir da qual a pesquisa foi confeccionada, a saber, “Modos de conhecimento e suas expressões: Experiências e Trajetória”, o campo no qual inscrevo e finco esta tese é o campo de “invenção teórica e a experimentação metodológica”.
Questões
A primeira questão que foi colocada durante a pesquisa foi: “se e como a experiência de menstruar durante encontros etnográficos é expressa no modo como se produz conhecimento antropológico?”. Meu interesse era, a princípio, olhar com mais atenção para as contradições, conflitos e potências das experiências de menstruação em campo, em especial em terras indígenas, onde o sangue menstrual e a menstruação acompanham outras práticas, significações e pensamentos. Na literatura etnográfica é possível encontrar diversas descrições de resguardos menstruais vividos pelas mulheres indígenas, que podem incluir, por exemplo, a abstenção de cozinhar, trabalhar, banhar-se no rio, ficar perto de pajés, andar em roças. As antropólogas também menstruam. Interessava-me muito também entender como era possível o desaparecimento da menstruação de quem pesquisa dos relatos etnográficos, uma vez que este modo de produção de conhecimento se constitui justamente no que a pessoa que pesquisa experiencia com seu próprio corpo. Intrigava-me o fato de o trabalho de campo ser, afinal, trabalho, e, por isso, submetido às lógicas de produtividade que enfrentamos em outros tipos de trabalho no capitalismo. E, em meio a tudo isso, eu estava muito curiosa em saber como tais experiências eram vividas por mulheres que, em sua maioria, eram feministas, uma vez que o campo da antropologia possui fortes vínculos históricos e políticos com os movimentos sociais e de mulheres (Franchetto, 1981). Será que essas mulheres tinham vivido “na pele” resguardos menstruais? Como as proibições que acompanham os resguardos as afetaram? E por que isso tudo era tão invisível?
Ao começar a recolher relatos de menstruação em campo e observar o modo como essas experiências eram expressas, ou seja, como eram pensadas e comunicadas pelas antropólogas, percebi que minha primeira questão, na verdade, era uma armadilha que eu mesma tinha colocado no meu caminho. De saída, eu sabia que a resposta para a primeira parte da minha pergunta – “se a experiência de menstruar durante encontros etnográficos é expressa no modo como se produz conhecimento antropológico?” – era “não”, essa experiência não é expressa no conhecimento produzido, ou é apenas raramente. Por isso, entendi que minha pesquisa era, na verdade, uma tentativa experimental de produzir tais expressões. E que isso teria que ser feito a contrapelo das práticas científicas estabelecidas, pois essas são baseadas no “olho de deus”, um corpo sem marcas (Haraway, 1995) que não acolhe as manchas da menstruação.
Escavando essa primeira questão de pesquisa, encontrei outra. Ela estava emaranhada na primeira, enrolada nela como uma cobra esperando para dar o bote. E deu. Ao entender a natureza do meu trabalho, presenciei a revelação desta questão ctônica: “se e como é possível manifestar as marcas que os corpos possuem e, de forma segura, insistir em produzir conhecimento acadêmico/institucional?”. Era ela, na verdade, que estava subterraneamente animando minha pesquisa. Uma pergunta antiga, soterrada, enorme, difícil, dolorosa. Uma pergunta já feita tantas vezes, e que será feita tantas outras. Uma pergunta urgente, enraizada no esforço que outras pessoas marcadas já fizeram para tentar respondê-la.
No livro The Science Question in Feminism, Sandra Harding formulou a seguinte questão: “é possível usar para fins emancipatórios ciências aparentemente tão intimamente envolvidas nos projetos burgueses, masculinos e ocidentais?” (p. 9, 1986). Dessa forma, Harding deslocou a questão das mulheres na ciência de uma preocupação com proporcionalidade e representatividade para o questionamento das próprias estruturas da produção de conhecimento tecnocientífico. Como desdobramento das provocações de Harding, Donna Haraway escreve o artigo “Saberes localizados: questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial” (1995), um clássico dos estudos feministas da ciência e tecnologia. Mesmo passadas algumas décadas, as questões levantadas nos servem de sustentação para elaborar nossos pensamentos em um cenário ainda estruturalmente muito parecido com aquele que Harding descreveu – burguês, masculino, ocidental.
Nas últimas duas décadas, a composição do corpo acadêmico no Brasil vem se modificando através de lutas que resultaram em políticas públicas afirmativas voltadas para o ensino superior, implementadas pelos governos de esquerda a partir de 2003. Algumas dessas ações foram: a construção de universidades em regiões periféricas do país; estabelecimento de cotas nos vestibulares de universidades públicas para pessoas vindas do sistema público de ensino, pessoas negras e pessoas indígenas; programas de financiamento para pessoas das classes trabalhadoras poderem acessar o ensino superior particular. Eu mesma sou fruto deste processo, trabalhadora e filha de trabalhadores. Com a entrada no ensino superior de uma diversidade de pessoas nunca antes vista, a retomada e transmutação das questões levantadas por Harding e Haraway é um movimento necessário e efervescente para que nossa ocupação destes espaços não acabe por engolir a nós mesmas em nossas diferenças. A instituição é uma máquina de conformar corpos e homogeneizar possibilidades de futuros.
Algo que inevitavelmente acabamos nos perguntando é se devemos ocupar esses espaços, e, se sim, como. Stengers (2015) se debruça sobre essa questão, defendendo nossa permanência em espaços de contradição, incluindo a academia, como forma não de resolver tal contradição de uma vez por todas, mas de, pelo menos, conhecermos bem o terreno por onde nos forçam a caminhar – e quem sabe construir novas alianças capazes de estabelecer outras trilhas. Se quisermos nos manter como pessoas que pesquisam, ensinam e trabalham dentro de uma universidade, precisamos de estratégias para viabilizar nossas permanências. Isso inclui uma luta constante por melhores condições materiais, mas que anda em paralelo com a necessidade de nos mantermos íntegros em nossas diferenças – o que só é possível com uma mudança radical no modo como a ciência é produzida. É preciso cultivar técnicas de insistência que, por um lado, nos protejam e, por outro, nos permitam continuar caminhando e encarando o monstro avassalador que estamos enfrentando.
Objetivos
Acompanhando a primeira questão de pesquisa, o primeiro objetivo colocado foi o de trazer à tona experiências de menstruação durante trabalhos de campo. Dessa forma, de saída, pretendia escavar os sussurros, murmúrios, meias palavras e silêncios que são tão comuns em nosso aprendizado sobre como deve ser a experiência da menstruação, e transformar as conversas de corredores, causos e histórias que mal passam entre os dentes – e, como na citação de Belaunde que abre esta introdução, compõem uma parte “desinteressante” do fazer antropológico – em material de pesquisa. A potência desse movimento está justamente no que foi apontado pelas mulheres indígenas da mesa supracitada: fazer pensar sobre práticas científicas de produção de conhecimento a partir de críticas anticapitalistas, decoloniais e feministas, contribuindo com a construção de protótipos de objetividades e produtividades que nos interessam.
A noção de “experiência” foi o ponto focal da pesquisa. Suely Kofes aponta para a confusão entre a vida como é vivida, isto é, a vida como experiência (imagens, sentimentos, emoções, desejos, pensamentos e significações conhecidas pela pessoa que as vivenciaram), e a vida contada como narrativa (narrativa influenciada pelas convenções culturais do contar, pela audiência e pelo contexto social) que uma pessoa que pesquisa enfrenta ao produzir dados etnográficos (2001, p. 163). Porém, o que constitui a experiência é a sua capacidade de ser expressa, comunicada, uma vez que não implicaria apenas em ações e sentimentos, mas também em reflexões sobre ações e sentimentos (2001, p. 164). Seguir experiências requer prestar atenção às ações das quais os sujeitos da pesquisa participam e, a partir de suas formulações e reformulações narradas, situar os pensamentos sobre o vivido.
Em consonância com a segunda questão que emergiu na pesquisa, e sabendo que menstruações em campo dificilmente são expressas durante a produção de conhecimento científico, outro objetivo que trouxe para a pesquisa foi o de realizar e sistematizar uma experimentação metodológica baseada, principalmente, na crítica feminista à ciência e tecnologia. Para isso, busquei conceitos presentes nessas críticas e formas de traduzi-los para práticas de pesquisa, ou seja, práticas no mundo.
Hipóteses
Quando desenhei a primeira questão de pesquisa, estava informada por uma “intuição etnográfica” baseada em minhas experiências anteriores à pesquisa acadêmica, como trabalhadora precarizada. Vendendo meu corpo, minha mão de obra por hora no “mercado”, eu sabia que o aparecimento da menstruação em horário de trabalho implicava estar vulnerável e, nesse contexto, estar vulnerável significa mostrar um corpo “fraco” que não “aguenta” o trabalho e, por isso, é menos produtivo. Pensando bem, aprendemos isso desde cedo, porque o modo como lidamos com a menstruação na escola não é muito diferente disso. Então, não haveria porque ser diferente no trabalho acadêmico. Minha primeira hipótese, portanto, era que a falta de expressão das experiências que envolvem a menstruação deveria ter algo a ver com a confecção de um corpo de trabalhadora que pudesse ser tão produtivo quanto o corpo “modelo” a ser seguido, ou seja, um corpo que não menstrua.
A partir do momento em que eu já estava trabalhando e começando a desenvolver experimentos para trazer à tona as experiências de menstruação, a minha segunda questão de pesquisa apareceu e, com ela, um desafio enorme. Se minha intuição dissesse que a resposta era: “não, não é possível manifestar as marcas que os corpos possuem e, de forma segura, insistir em produzir conhecimento acadêmico/institucional”, eu deveria, por rigor ético, desistir da pesquisa. E, conforme fui avançando na carreira acadêmica e vendo várias colegas desistindo, entendi que a desistência também é uma ferramenta política válida e interessante. Eu mesma pratico a desistência em muitos contextos. Porém, eu via na minha vida e na vida das pessoas ao meu redor, aquelas que não acessaram a universidade e aquelas que, como eu, vinham de um contexto novo de políticas públicas para ingresso nas universidade, que talvez ainda houvesse alguma coisa para tentar. O não e a desistência permaneciam, e permanecem, como alternativas a serem seguidas, mas minha “intuição etnográfica” me dizia para tentar me mover dentro da institucionalidade e, nesse processo, caminhar com calma, cuidado e atenção, para saber bem onde estou pisando.
A segunda hipótese que acompanhou a pesquisa foi, portanto, a insistência em estar e produzir conhecimento acadêmico por caminhos de acolhimento e cuidado. Mas, para isso, era necessário pensar em como se mover dentro da “barriga do monstro” (Haraway, 2004, p. 1). Além das questões de poder, como as complexas opressões de gênero costuradas com opressões de racialidade, classe etc., eu sabia que, ao trabalhar a menstruação, estaria lidando também com sentimentos profundamente arraigados, como o nojo e a repulsa. Esses sentimentos são viscerais: quando os sentimos, sentimos no estômago, na barriga, nas vísceras, como se se tratasse da manifestação de um impulso incontrolável. A suposta “naturalidade” dessa resposta corpórea visceral serve como uma proteção para se abrir ao pensamento. E é muito complicado iniciar qualquer conversa partindo de uma invalidação de um sentimento que é tão pouco racionalizável. Mas, já que a ciência é uma comunidade de pessoas que pesquisam, para insistir em estar e produzir conhecimento científico mostrando as marcas dos nossos corpos, entendi que, como estratégia, era importante fazer com que a conversa se estabelecesse, e que as questões que eu estava colocando em minha pesquisa fossem capazes de “viajar” através das tecnociências para além das interrogações oficiais de cada nicho de conhecimento (Pinheiro Dias et al, 2016).
Por isso, resolvi modelar essa hipótese tendo como base a proposta da química e filósofa feminista Isabelle Stengers de tentar iniciar conversas sem “ferir os sentimentos estabelecidos” (2002, p. 26). Para Stengers, nenhum enunciado, mesmo aqueles emitidos em nome da verdade e do bom senso, pode “deixar de levar em consideração as consequências de sua enunciação” (2002, p. 25). Pensando na questão que acompanha essa hipótese, é muito difícil se revelar um corpo marcado, e as vulnerabilidades que isso acarreta, e se manter em segurança diante dos efeitos de “ódio, de ressentimento, de rigidez aterrorizada” suscitados, e sustentar isso como “prova que o mal foi atingido” (ibid.). Para Stengers, esse posicionamento assume a responsabilidade de não “obstruir o devir”: “não ferir os sentimentos estabelecidos a fim de poder tentar abri-los àquilo que sua identidade estabelecida os obriga a recusar, combater, desconhecer” (ibid., p. 26). Se defendendo de que isso seria um projeto de otimismo ingênuo, Stengers argumenta que se trata de um “otimismo técnico, que traduz o saber técnico do diplomata a propósito dos crimes que o heroísmo da verdade acarreta” (ibid.). Stengers também explica sua proposta através da oposição entre “discordância” e “divergência”:
(…) fazer uma pergunta que viaje tem a ver com uma forma de contraste positivo que eu chamo de divergência. Uma divergência não é uma discordância. Você se diverte e ao mesmo tempo cria. Divergir é uma maneira de criar algo que tenha importância. Você cria a si mesmo e o que importa para você em processo divergente. Tentar entender a divergência e não descobrir a semelhança, nem generalizar. (Pinheiro Dias et al, 2016, p. 167)
Agrego, portanto, a “hipótese da insistência”, essa orientação teórico-metodológica de que o teste dela implica em testar também o “caminho” que conduz ao cuidado para não ferir os sentimentos estabelecidos. Gostaria de pontuar que eu mesma me filiei a essa hipótese duvidando, ou divergindo, profundamente dela. Como pessoa que se formou politicamente dentro do movimento anarcopunk, tudo isso me soava “pelego” demais. Eu estava acostumada ao enfrentamento, às “ações diretas”, como modo de produzir no mundo. Mas fazia isso na rua, e a rua não é uma Instituição, um braço do Estado-Nação. A rua é a rua, e o que vale na rua talvez não valha dentro da universidade (e vice-versa). Me dispus a testar isso porque fazer ciência é justamente se embrenhar em algo que você não conhece, e aprender com essa experiência.
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A seguir, localizo algumas trajetórias passadas, pontos de partida e transformações no percurso que encaminharam às possibilidades e impossibilidades encontradas ao longo da pesquisa; apresento, de forma geral, as bases metodológicas e materiais e ferramentas digitais utilizadas; e exponho a estrutura do texto da tese, que também pode ser navegada digitalmente.
Partindo de encruzilhadas e atravessando labirintos Sobre a metodologia e materiais Ferramentas digitais utilizadas Passeando pela tese