Quando pensamos na questão da presença do corpo-que-pesquisa no trabalho de campo em antropologia, uma análise das experiências de menstruação pode abrir novas discussões, bem como enriquecer as antigas. Apresento, a seguir, algumas descrições de menstruação durante o trabalho de campo com as quais pude entrar em contato logo no começo de minha pesquisa e que me ajudaram a modelar este material. Prestar atenção a tais processos pode ser enriquecedor, assim como revelador de uma série de dinâmicas intrínsecas aos modos de produção de conhecimento que são praticados no fazer antropológico. 

Em entrevista, Luisa Elvira Belaunde conta que ficou menstruada uma semana após chegar à comunidade Airo-Pai, na qual desenvolveria sua pesquisa de doutorado (Dainase e Seraguza, 2016). A antropóloga relata como esse evento mudou o curso de sua experiência. Sem se sentir preparada para isso, uma vez que na London School of Economics o assunto nunca havia sido levantado nos cursos de preparação para trabalho de campo, Belaunde relata como foram as dicas de colegas que já estiveram na comunidade. Seus conselhos a levaram a prestar atenção quando menstruou, já que havia sido alertada a respeito da severidade dos Airo-Pai com relação aos processos biológicos. Relata, também, como foram os conselhos das mulheres Airo-Pai que a fizeram entender a seriedade do momento. A vivência da experiência em campo fez com que ela acessasse situações que pensava, a princípio, serem contraditórias:

Percebi também que as mulheres prestavam muita atenção no meu estado de ânimo. Depois do café da manhã todo mundo ia trabalhar e me deixavam sozinha. As mulheres se dirigiam até mim e diziam “você vai ficar aqui sentada olhando, você vai cuidar do lugar”. Eu ficava sozinha na comunidade, todo mundo ia, mas sempre enviavam uma criança. A criança vinha da roça com algum tipo de bebida, alguma coisa para comer servida numa folha de bananeira, vinha para me acompanhar um pouquinho. Quando as mulheres voltavam da roça falavam “você está sozinha e triste? Mas é bom, é bom isso que você faz”. Eu percebi como o estado de ânimo da mulher era importante, porque todo mundo entendia que aquele era um momento que as pessoas chamam de jocua, “silêncio”. A menstruação é um momento difícil, a mulher está reclusa, sozinha, sem falar e se sentindo abandonada pelos outros. (…) Então eu vivi essa situação paradoxal: de estar reclusa, realizando um ritual (se pode dizer) de subordinação feminina (eu tinha aprendido isso nesses termos), mas percebia que era algo muito modulado porque era um momento de se tornar vulnerável, aceitar essa vulnerabilidade, receber os cuidados dos outros e ser objeto de pensamento dos outros. (Dainase e Seraguza, 2016, p. 7)

Tal experiência fez com que Belaunde, ao retornar a Londres, tivesse a intenção de focar sua tese na menstruação a partir do ponto de vista dos afetos e das consequências cosmológicas, o que não foi bem recebido. Segundo a antropóloga, havia resistências por parte das feministas acadêmicas da época (começo dos anos 1990), que temiam que relacionar gênero e menstruação reforçaria uma ideia biologizante dos corpos, mas também resistências com relação ao tipo de análise que ela propunha, uma vez que fugia das análises correntes que afirmavam que os rituais de reclusão eram rituais de subordinação da mulher (2016, p. 7). Tais análises estavam fortemente ancoradas em marcas que a categoria “mulher” carrega historicamente, como a associação entre mulher e natureza (o que coloca esse corpo fora da história) e o vínculo entre a identidade mesma da mulher e a submissão à situação de alienação (Pisani, 2015, p. 3).

A menstruação também foi algo que impactou o trabalho de campo de Bruna Franchetto, linguista e antropóloga italiana radicada no Brasil, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na verdade, o impacto se deu não por causa da presença da menstruação, mas por sua ausência. Bruna Franchetto não menstruou em campo. Os sintomas da amenorreia apareceram logo quando ela chegou entre os Kuikuro, e persistiram em todos os retornos, independentemente da quantidade de meses que ela ficava na aldeia. Porém, ainda assim, Bruna era “uma mulher com sangue”, o que contribuiu para uma vivência de ambiguidade que a antropóloga nomeou como a vivência de um “ser andrógeno”, “com a ambiguidade de uma quase assexuada (sozinha, sem marido, feia, cabelo branco, olhos de água)” (Franchetto, 2023, p. 2). É interessante notar como Franchetto, quarenta anos depois, expressa essa experiência:

Desejando contornar a vulnerabilidade da mulher menstruada – três dias cada mês apartada no meu canto da casa, uma pequena reclusão, poluidora de outros corpos, comidas, água –, meu corpo reagiu instintivamente e parei de menstruar, uma amenorreia que mobilizou a atenção, os comentários e as interpretações das mulheres kuikuro. (Franchetto, 2023, p. 2)

Com o tempo e o aprendizado da língua, Bruna diz que foi “ressexualizada”, tornando-se uma espécie de mulher não plena, uma “estrangeira alienígena” (Amoroso, 2021). Sentindo-se fora do tempo, foi na conversa com as outras mulheres que encontrou um pouco de conforto, se lembrando de sua militância feminista e do “reconhecimento recíproco entre mulheres, com suas diferenças”. Conforme o tempo foi passando e o seu corpo mudando, Bruna diz que reconhece uma “terceira fase” em campo, na qual torna-se uma hagy, “mulher sem sangue, velha”. Só nesse momento é que Bruna reconhece uma cumplicidade absoluta entre ela e as mulheres, e, em certa medida, entre os homens também.

Assim como na fala de Luisa Elvira Belaunde, podemos observar através do relato de Franquetto que a menstruação em campo, incluindo sua ausência, é uma preocupação para as pessoas que estão convivendo com elas, além de demandar uma série de cuidados, que envolvem, em especial, a reclusão da mulher menstruada. Isso também aparece na descrição que Isabel Santana de Rose (2010) fez de uma situação de menstruação durante o trabalho de campo. Essa foi a descrição publicada mais detalhada que pude encontrar, e está na tese de doutorado que Rose produziu. A antropóloga ficou menstruada no segundo de dia campo, quando estava participando de uma cerimônia chamada “Fogo Sagrado”:

Eu fiquei menstruada neste dia, o dia de ser plantada na montanha. A menstruação feminina tem uma série de conotações importantes no contexto do Fogo Sagrado. Afirma-se que a menstruação ou “lua” é um momento no qual a mulher está numa conexão direta com a terra. O período tem, portanto, uma conotação sagrada,  representando também um momento de poder da mulher. Na prática, entretanto, a  menstruação implica numa série de tabus e restrições rituais: as mulheres  menstruadas não podem participar dos temazcais, exceto aqueles realizados  especialmente para as “mulheres com a lua”, que são raros; não podem entrar nos círculos da busca da visão e da dança do sol; durante as cerimônias de medicina  devem amarrar ao redor do ventre um cordão com 28 rezos de tabaco, que representam os 28 dias do ciclo feminino e das fases da  lua, e assim por diante. No  caso da busca da visão, as mulheres que estão com a lua são “plantadas” num espaço especial chamado opy  djatchy, ou casa de reza da  lua. O uso de um  termo guarani  para designar este espaço não é por acaso, e aponta para como são estabelecidas uma série de analogias entre as noções do Fogo Sagrado sobre o “feminino” e as práticas  e concepções guarani a respeito da mulher e da menstruação, bem como para a intensidade dos diálogos entre o Fogo Sagrado e os moradores da aldeia Yynn Morothi Wherá. (Rose, 2010, p. 164)

Rose conta que o espaço reservado para as mulheres menstruadas, a opy djatchy, ficava relativamente escondida em uma pequena mata. A principal diferença desse espaço é que ele é coberto, ao contrário do local onde a cerimônia acontece, que é aberto, e todos dormem ao relento. Dentro da opy djatchy há um fogo, e as mulheres devem manter esse fogo aceso todo o tempo. Além disso, o “espaço da lua” é demarcado com um círculo de rezos e possui um banheiro e uma vasilha com água à disposição. Outra diferença pontuada por Rose é que, no espaço onde a cerimônia acontece, as pessoas ficam isoladas, e na opy djatchy pode acontecer de várias mulheres estarem lá ao mesmo tempo, o que implica em alguma comunicação: 

Por uma coincidência da natureza, no lugar de ir para a montanha, fui plantada na  opy  djatchy, onde permaneci durante os quatro dias da busca da visão. Pude assim  ficar relativamente protegida da chuva quase ininterrupta que continuava, e do frio que fazia na serra, mesmo sendo janeiro. Também pude me entreter com a  companhia silenciosa de outras mulheres menstruadas e com o cuidado com o fogo,  que tinha que ser mantido aceso  mesmo durante as noites, o que não era sempre fácil, levando em conta que a maior parte da lenha estava molhada devido à chuva. No temazcal onde foi  devolvida nossa palavra, momento no qual é aceso o tabaco cerimonial que recebemos antes de começar a busca, falei sobre como a pequena opy no meio da mata com fumaça saindo pelo teto tinha me lembrado os contos de fada que eu lia e com os quais sonhava quando era criança, e sobre como a beleza que havia podido enxergar nos pequenos detalhes da mata que nos cercava fazia com que me sentisse também num conto de fadas e, de certa maneira, voltasse a ser criança. (Rose, 2010, p. 167)

O tema da menstruação aparece distribuído ao longo da tese de Rose, revelando-se como um dos fios para pensar a questão do “feminino” no contexto do Fogo Sagrado. Rose não articula sua experiência de menstruação em campo com essa presença do tema em sua pesquisa. Porém, em uma aproximação externa, como leitora, acredito que a descrição acima, de uma beleza encantadora, possa ser um indício de que essa experiência foi fundamental para o modo como a antropóloga conduziu a pesquisa e, entre tudo o que podia escolher para desenvolver, foi por um caminho que atravessou o próprio corpo. Entre as descrições de menstruação que pude ler em trabalhos publicados, a de Rose certamente é a que mais me tocou: ali estão presentes elementos contraditórios da situação vivida, descritos com detalhes sensoriais que nos transportam para aquele conto de fadas esfumaçado, e nos permite compartilhar com a antropóloga a sensação de “voltar a ser criança” que momentos de cuidado muitas vezes nos proporcionam.

-*-

Em nossa sociedade, a menstruação está muito associada a um caráter “natural” e biologizante, o que serviu durante muito tempo para construir uma divisão estrita de gênero, sendo mulher o corpo que menstrua (Rohden, 2001). Essa materialização de uma ideia de gênero em um processo biológico ainda é muito debatida nos movimentos sociais e nas áreas médicas. Certos discursos de gênero moveram as mulheres para fora da natureza, porém, realizaram esse movimento sem problematizar a passividade da categoria natureza, o que colocou em quarentena discussões que pautassem um “corpo biológico” (Pisani, 2015, p. 4). Por isso, dentro da multiplicidade dos movimentos feministas, a menstruação também é algo “incômodo” e não consensual, podendo ser tanto alvo de negação quanto de repressão, quando requerida em discursos reducionistas e violentos contra pessoas dissidentes de gênero. Observar como a menstruação afeta relações profissionais dentro de um campo majoritariamente feminista (Franchetto, 1981; Sardenberg, 2001; Nascimento, 2019; Bobel et al, 2020) é produtivo para alimentar tal debate, abrindo o leque de possibilidades de relação com a menstruação, e para pensar modos de ensino – inclusive em antropologia – que contemplem as experiências menstruais.

As experiências de menstruação em campo, em especial em contextos etnológicos, também são materiais para observar dinâmicas na produção do conhecimento que produzem hierarquias coloniais e racistas. A antrópologa Braulina Aurora Baniwa aponta como os missionários religiosos praticaram o que ela nomeou de genocídio contra as práticas de cuidado dos corpos das mulheres, o que inclui as práticas de reclusão menstrual (Amoroso, 2021). A condenação a práticas como os rituais de reclusão da menarca é capaz de transformar todo um modo de vida. Podemos pensar que teorias antropológicas que partiam do pressuposto de um patriarcado universal e dos tabus menstruais como práticas de subordinação da mulher (Belaunde, 2006) contribuíram para tal projeto racista de apagamento de outras formas possíveis de menstruar. 

Por fim, gostaria de localizar essa discussão sobre menstruação e trabalho de campo em antropologia em um espectro maior de preocupação analítica, a saber, menstruação e trabalho de maneira geral. Por vezes, o trabalho acadêmico não é entendido como trabalho profissional, visto que, no Brasil, o financiamento para pesquisas de pós-graduação se dá em forma de bolsas e não de salários. Porém, é importante afirmar o trabalho de produção de conhecimento enquanto trabalho social e economicamente relevante. Sendo assim, as experiências de menstruação em campo estão perpassadas pelas relações entre tecnologias de trabalho capitalista e tecnologias de gestão da menstruação. Um exemplo de como essas relações constituem o modo como nossa habilidade em menstruar é moldada é o fato de que o desenvolvimento do absorvente higiênico está fortemente atrelado à consolidação das mulheres no mercado fabril e às extensas jornadas de trabalho que enfrentavam (Ulrich e Kamnsky, 2021).

PARTE 1 _ materiais

< Menstruação em campo | Experiências e trajetos menstruais >