A preocupação com o corpo tem um lugar privilegiado nas teorias e práticas antropológicas e tem raízes na consolidação dessa disciplina como ciência e no estabelecimento da etnografia, seu método de pesquisa por excelência. Nas etnografias clássicas lemos histórias de viagens e encontros que foram possíveis através de traslados corpóreos, tendo como ponto de partida países europeus, como Inglaterra e França, bem como os Estados Unidos da América. Desse modo, o encontro corpo a corpo com a chamada “alteridade radical” tornou-se fonte de produção de dados científicos. A antropóloga Mariza Peirano considera que, por muito tempo, “a antropologia foi definida pelo exotismo do seu objeto de estudo e pela distância, concebida como cultural e geográfica, que separava o pesquisador do seu grupo de pesquisa” (1999, p. 2). Em um primeiro momento, esse corpo-outro foi observado, categorizado, analisado. Suas técnicas, modos de produção e reprodução da vida, estéticas, políticas e cosmologias transformaram-se em monografias e livros que fascinaram o “mundo civilizado” através de uma série de instrumentos de mediações, incluindo o diário de campo do corpo-pesquisador (Peirano, 1999; Sardenberg, 1994, Oliveira, 2019).
Porém, era através da força colonial que, com mais ou menos dificuldades, um cientista conseguia realizar expedições para desenvolver sua pesquisa, gerando monografias que muitas vezes eram utilizadas como instrumento de dominação dos povos colonizados. As guerras de libertação na África e Ásia e o início de processos de descolonização interromperam esse fluxo de deslocamento físico, impedimento que forçou uma mudança na coreografia da produção de conhecimento. Agora, o corpo-pesquisador passa a ser forçado a pensar-se como parte integrante de um sistema de onde emergem os dados com que trabalha (Peirano, 1999; Nascimento, 2019). Nesse momento, a pesquisa etnográfica de mulheres começou a ganhar repercussão. Margaret Mead tornou-se muito popular ao tensionar as crenças ocidentais civilizadas sobre a natureza determinística dos corpos, apresentando evidências em diferentes culturas a respeito da plasticidade de processos ditos biológicos, como a puberdade e a gestação (Mead, 1928). Era explícita a influência do corpo de Mead nos dados produzidos, ou seja, no que ela, como pesquisadora, conseguia acessar (Sardenberg, 2001).
O corpo-pesquisador tornou-se, portanto, presente, e as implicações dessa presença começaram a ser esmiuçadas. Antropólogas feministas desenvolveram críticas ao modo de produção de conhecimento científico hegemônico, refletindo especialmente sobre a possibilidade de fazeres antropológicos feministas (Sardenberg, 2001; Almeida, 2002; Corrêa, 2003). Na antropologia, a centralidade do trabalho de campo faz com que o método etnográfico evidencie o corpo de quem pesquisa, tornando-o materialmente visível durante esse fazer científico. O que é visto são modos de se deslocar, de se movimentar, de comunicar a partir de certa linguagem, a qual é carregada de marcas de gênero, sexualidade, geração, racialidade etc., que provocam efeitos onde estão e aonde vão (Nascimento, 2019, p. 460). Recentemente, tal materialidade vem sendo pensada e debatida de forma mais sistemática, em especial com relação aos impactos nos/dos corpos marcados na produção e circulação do conhecimento antropológico. A seguir, apresentarei alguns trabalhos que colocam essas questões em evidência.
No livro Antropólogas e antropologia, Mariza Corrêa segue a história de vida de antropólogas, perguntando-se pelos esquecimentos e apagamentos das pioneiras do campo no Brasil, que, quando aparecem, são apresentadas como “esposas de”. Quase sempre essas pesquisadoras figuravam como auxiliares de seus maridos – estes, sim, os “Profissionais” –, fazendo trabalho de campo em conjunto. Fora dessa lógica, realizar trabalho de campo para uma mulher era algo tenso, violento e perigoso, como narra Corrêa acerca dos ataques advindos de colegas antropólogos proferidos contra Ruth Landes, enquanto ela pesquisava o candomblé na Bahia. Landes chegou a ser acusada de vender serviços sexuais para permanecer em campo, calúnias que, para ela, foram um “estupro simbólico” (2003, p. 24).
Mariza Corrêa aponta uma questão que é cara a esta pesquisa e sobre a qual pretendo aprofundar-me: o caráter “andrógeno” e, portanto, perigoso, das antropólogas. Através dos poucos registros que foram produzidos sobre essas pesquisadoras (referências, biografias curtas, necrológios), Corrêa demonstra como uma pessoa cientista prontamente é associada a um indivíduo “homem” e, por isso, há nos textos atribuições de adjetivos e descrições que buscam constantemente (re)afirmar a impermeabilidade e a rigidez da fronteira homem/mulher, movendo-as prontamente para o segundo polo (2003, p. 30). Dessa forma, essas pesquisadoras se constituem como “seres de natureza imaginária”, sem encontrar acolhimento no novo espaço social que tentavam ocupar, mais próximas dos monstros do que da humanidade ali compartilhada.
O primado da biologia nos modelos etnológicos é reiterado através da crença de que as mulheres etnólogas estariam mais aptas a uma melhor compreensão das mulheres nativas. Porém, no texto de Corrêa encontramos o exemplo da experiência de campo de R. Fortune entre os Dobu, onde o antropólogo encontrou-se “em situação de mulher, já que entre os Dobu um homem não é viril sem magia amorosa e já que o antropólogo não obteve a composição secreta dos filtros amorosos” não poderia ser considerado homem (2003, p. 197). Tal espaço “liminar” foi reforçado por outras autoras (Almeida, 2002; Nascimento, 2019), sendo a busca pela compreensão da alteridade um movimento que provoca transformações no corpo de quem pesquisa, isto é, um “tornar-se outras” a partir da percepção daqueles “outros” com quem estabelecem relações.
Em 2006, Alinne Bonetti e Soraya Fleischer organizaram o livro Entre saias justas e jogos de cintura: Gênero e etnografia na antropologia brasileira recente. Na introdução, as autoras contam que o desejo era abrir um espaço para discutir dúvidas e angústias com relação ao trabalho de campo etnográfico, uma vez que, durante a formação, o que temos são silêncios, em especial com relação a como marcações como a de gênero afetam esse trabalho. Ambas ressaltam que o livro não pretende ser um manual, com respostas diretas às questões, uma vez que a pesquisa em antropologia pressupõe um “capturar ou ‘perder-se’ pela experiência de campo” (2006, p. 21), conferindo um caráter sempre experimental a esse fazer e permitindo que as respostas às dificuldades também sejam construídas etnograficamente. Entretanto, a proposta de conhecer outras experiências é a de formar um repertório de possíveis problemas e possíveis saídas para esses problemas, para que esse ofício não precise ser solitário. Afinal, é próprio da ciência um fazer coletivo.
Em 2018, a revista Cadernos de Campo publicou uma seção especial, intitulada “Adversidades no fazer antropológico”, com o objetivo de trazer uma discussão analítica, pública e coletiva acerca dos riscos e abusos que o trabalho de campo pode acarretar, especialmente com relação aos corpos marcados. O aprendizado sobre o trabalho de campo com base nos manuais clássicos é, segundo as organizadoras da seção especial, romantizado. Por isso, na revista, são trabalhadas questões sobre: os efeitos dos corpos de quem pesquisa nas interações com as pessoas e grupos com os quais interagem; como as marcações (de raça, classe, gênero, sexualidade, geração, deficiência) podem potencialmente conformar os caminhos da pesquisa em campo; as práticas com relação à propriedade de conceitos e métodos empregados na antropologia; as estratégias textuais que expressam experiências de adversidade (Ribeiro et al, 2018, p. 231).
Mais adiante veremos que a menstruação em campo pode provocar mudanças significativas nas relações estabelecidas durante o trabalho. Tais experiências podem se tornar também “adversidades”, na medida em que há uma falta de repertório sobre o assunto. Contar tais histórias certamente ajudará a traçar estratégias e caminhos não somente para pessoas que menstruam, mas também informando aquelas que não menstruam e compõem conosco grupos de pesquisa. Sendo orientadoras, supervisoras, coordenadoras e professoras responsáveis pela formação das novas gerações, essas pessoas também possuem responsabilidades em garantir o acesso a um repertório realista de experiências de trabalho de campo, capaz de minimizar os potenciais riscos, principalmente para os corpos marcados.
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