Na antropologia há uma longa tradição de pesquisas atentas às “técnicas corporais”, ou seja, arranjos biopsicossociais pelos quais as pessoas servem-se de seus corpos (Marini, 2018). Nesta seção, apresento um breve panorama acerca de como o conceito de corpo foi sendo desenvolvido e agenciado como um dos pilares fundantes da antropologia, e as implicações práticas para a produção de conhecimento antropológico que envolve uma atenção dirigida aos corpos em campo.
Marcel Mauss, um dos fundadores da antropologia como disciplina científica, realizou análises pioneiras que colocaram o corpo em destaque, demonstrando como ações do cotidiano, tais como nadar ou caminhar, dependiam de uma série de técnicas refinadas, transmitidas socialmente através de modos de ensino e aprendizagem. Em 1934, Mauss lança o livro As técnicas do corpo, um marco para a antropologia (Mauss, 2003). O que antes poderia ser considerado algo “inato” ao corpo humano tornou-se mais complexo através de uma série de etnografias que descrevem técnicas corporais plurais. Anos depois, em 1950, Claude Lévi-Strauss lança o livro Introdução à obra de Marcel Mauss, no qual aponta para o fato de a teoria sustentada por Mauss ser contrária a outras correntes racistas que atrelavam o caráter humano ao corpo “biológico” (Lévi-Strauss, 2003). Ao inventariar técnicas corporais, Mauss demonstrou que os seres humanos sempre e por toda parte produziram os próprios corpos como resultado de suas técnicas e de suas representações (Haibara e Santos, 2016).
Passou-se mais de um século de desenvolvimento da antropologia como disciplina, e muitas outras perspectivas sobre o corpo foram produzidas nesse período. Mais recentemente, por exemplo, o antropólogo britânico Tim Ingold renovou o debate sobre corpo e conceitos correlatos, como técnica, corpo, agência, aprendizado e comunicação. Propondo uma maior aproximação com outras áreas do conhecimento, como a biologia, Ingold cunhou a noção de variações culturais como variações de “habilidades” (skills), levando a um afastamento de outras leituras que carregam em si uma separação entre corpo e mente e que afirmam certa autonomia automática do corpo em ensinar e aprender por meio da cultura. As habilidades seriam, portanto, “a capacidade de ação e percepção do ser orgânico como um todo (mente e corpo indissolúveis) situado em um ambiente ricamente estruturado” (Ingold, 2002, p. 5, tradução livre). Diferentemente do conceito de “técnicas corporais”, as “habilidades” não seriam transmitidas de geração para geração, mas refeitas e renovadas a cada vez, em conjunto com as relações que os seres humanos estabelecem entre si, com outros seres não humanos e com o ambiente como um todo.
Ao longo da história da disciplina, uma série de antropólogas realizaram movimentos no sentido de apontar a seletividade dos corpos que foram fontes de observação e de escrutínio nas grandes etnografias fundantes da disciplina, a maioria delas produzidas por homens euro-americanos, comissionados muitas vezes por Estados com interesses coloniais na pesquisa científica, como veremos mais na próxima seção.
Joanna Overing relata a tendência de intelectuais acadêmicos, urbanos e ocidentais, de encararem assuntos do dia a dia como entediantes. São desprezadas as técnicas corporais ou habilidades requeridas para, por exemplo, lavar pratos, alimentar crianças, limpar as casas, ou seja, tarefas que gostariam de “ver cumpridas com a maior rapidez possível e, de preferência, por outros” (Overing, 1999, p. 84). Assim, a vida ordinária cedeu lugar ao conhecimento extraordinário, como viagens xamânicas e caçadas com zarabatanas. Nesse cenário, não é estranho que as habilidades que envolvem a menstruação e outras atividades que a cercam (concepção, gestação, parto, cuidados com o corpo etc.) apareçam nas etnografias de modo tão apagado durante tanto tempo, sendo raro encontrar descrições detalhadas dessas técnicas.
Desse modo, corpos encarregados do que foi e é considerado simples e entediante também foram ofuscados e diminuídos em importância nas grandes teorias antropológicas. Porém, Overing e tantas outras reclamam o lugar de complexidade e interesse do cotidiano e das técnicas exigidas no dia a dia.
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